O desafio é grande: expandir a implementação de um modelo que promove a regularização de territórios urbanos. Esse é apenas um dos objetivos da Terra Nova, empresa brasileira que foi uma das vencedoras do prêmio Changemakers, promovido pela Ashoka. Fundada há dez anos, a Terra Nova começou suas atividades mediando conflitos relacionados às ocupações irregulares no município de Pinhais, região metropolitana de Curitiba (PR). André Albuquerque, fundador da empresa, conta que iniciou esse trabalho na prefeitura de Curitiba, mas com a mudança de gestão, o projeto foi desarticulado e, então, decidiu criar a Terra Nova para dar continuidade às atividades. De lá pra cá, ele explica, nessa entrevista à Rets, que a metodologia do trabalho foi aperfeiçoada "tanto na questão social, quanto na aprovação do projeto urbanístico, envolvendo questões de infraestrutura urbana, para facilitar o processo e encurtar o caminho de aprovação que é bastante longo". Por Viviane Gomes. Rets - Quais são os principais problemas que as comunidades enfrentam om relação ao direito à propriedade?André Albuquerque - Para falar sobre este assunto, precisamos falar um pouco da história do processo de ocupação irregular nas cidades. Com a saída das pessoas do campo para a cidade, a partir da década de 1970, as políticas públicas não deram conta de atender esta demanda da população de baixa renda, que veio para as cidades em busca de trabalho, de renda. Então, essas famílias começaram a ocupar áreas de risco e áreas frágeis ambientalmente. Áreas particulares e públicas. Esse foi um processo iniciado a partir da década de 1970 e que teve seu ápice nos anos 1990. Muitos proprietários das áreas particulares entraram com as reintegrações de posse, mas, por conta do impacto social de retirar, de despejar essas famílias dessas áreas, mesmo com ordem judicial, o governo não promovia estas desocupações. Então, a população começou a consolidar essas áreas, a construir casas numa situação de insegurança, mas, de qualquer forma, acabaram consolidando essas áreas. Depois de dez, quinze, vinte anos de ocupação irregular, havia a necessidade de adequar essas ocupações às diretrizes urbanísticas e ambientais do município, além da necessidade de as famílias possuírem o título de propriedade dos lotes que ocupavam. No entanto, enquanto há o impasse em relação à questão da terra, da propriedade, o poder público não pode levar a infraestrutura, como é preciso, e essa população não consegue acessar o título de propriedade. Com a formalização da propriedade, com a titulação em nome do morador, ele passa a ter aquele patrimônio regularizado. Então, o principal desafio do morador é exatamente esse. É conseguir negociar a área com o proprietário - que normalmente já tem uma indisposição em relação aos moradores por conta de toda a história da ocupação. Essa comunidade também não consegue se organizar suficientemente para poder levar a cabo essa negociação e, mesmo quando está organizada, muitas vezes não conhece os mecanismos técnicos legais para que possa adquirir essa propriedade com segurança. Então muitas vezes acontece de a comunidade se organizar, querer negociar com o proprietário, cotizar para arrecadar dinheiro, porém, na maioria dos casos, ela começa a arrecadar da população e o dinheiro acaba no meio do processo, não conseguindo arrecadar todo o recurso para pagar as parcelas. Em outras vezes, o moradores param de pagar, a relação de confiança começa a se deteriorar, e há casos em que o morador paga boa parte do valor para o proprietário, mas não consegue nem terminar o pagamento nem obter o título de propriedade. E tudo isso por conta da questão legal, da questão técnica. É dentro desse cenário que nós desenvolvemos um mecanismo que possibilita o acesso ao título de propriedade por parte do morador. Cada um paga o seu individualmente e cada um tem a segurança de que, pagando o seu, independente do vizinho, pode-se obter o título de propriedade do lote onde mora, de acordo com as diretrizes do município. Rets - Para solucionar esses problemas, qual foi a proposta que a Terra Nova trouxe? Há quanto tempo e como foi o início do trabalho?André Albuquerque - A Terra Nova existe há dez anos. O início do trabalho foi mediando conflitos relacionados às ocupações irregulares consolidadas em áreas particulares no município de Pinhais, da região metropolitana de Curitiba. Eu iniciei essa atividade na prefeitura do município. Com a mudança de gestão, o órgão foi desarticulado. Então, eu saí do município e criei a Terra Nova para dar continuidade ao trabalho iniciado. A partir daí, nós aperfeiçoamos a metodologia tanto na questão social, quanto na aprovação do projeto urbanístico, envolvendo questões de infraestrutura urbana para facilitar o processo e encurtar o caminho de aprovação, que é bastante longo. Rets - Como funciona o trabalho da Terra Nova? Como vocês elegem uma área que será trabalhada?André Albuquerque - Chegamos às áreas através do proprietário, da população ou pelo poder público. Quando o pedido de regularização chega através do proprietário, nós procuramos a comunidade, auxiliamos a organização e no fortalecimento das lideranças e, a partir disso, iniciamos o trabalho de mediação. Quando recebemos a indicação da comunidade, contatamos o proprietário e mostramos para ele que ainda é possível ganhar algo com a área, mesmo que ela esteja ocupada e aí começamos a trabalhar a mediação do conflito até chegarmos à regularização. Depois de recebermos o contato, realizamos um estudo de viabilidade para sabermos se aquela área reúne as condições técnicas e sociais para que possamos iniciar o processo. Se constatada a viabilidade, realizamos um diagnóstico mais aprofundado para levantar informações mais detalhadas em relação às questões legais, urbanísticas, ambientais e sociais que envolvem a comunidade e, então, iniciamos o trabalho de mediação para chegarmos ao acordo judicial e darmos continuidade ao trabalho de regularização. Rets - É difícil convencer as pessoas a indenizar os proprietários da área ocupada? Como ocorre esse processo? André Albuquerque - Não é difícil convencer as pessoas. O que mais atrai a população a pagar essa indenização é, primeiro, o ganho e relação à segurança da propriedade, ou seja, de poder ter acesso ao título de propriedade do lote que ocupa e, depois, é a valorização dessa propriedade. Muitas vezes, os moradores já investiram dez, quinze, vinte mil reais no imóvel e a valorização dele, a partir da regularização, é muito superior ao valor pago para regularizar o lote. Após a regularização, um lote pode valorizar até 100, 200%. A comunidade de baixa renda tem muita noção dessa valorização porque existe uma comercialização no mercado informal - e é natural que isso exista - em que as posses são vendidas mesmo antes da regularização. Então, existe uma valoração dessa transferência em relação ao que vale uma casa dentro de uma ocupação irregular e os moradores têm a percepção do quanto valeria se estivesse irregular. Isso atrai os moradores a investir na regularização. Rets - Quais são os critérios que vocês usam para medir as mudanças social, ambiental e econômica de uma determinada área? E como e quando elas aparecem? André Albuquerque - Quando se começa a retirar as famílias das áreas de risco, de preservação permanente. Quando, através de parcerias com o poder público, inicia-se o saneamento e a implementação de infraestrutura. Quando isso acontece fica muito claro os ganhos relacionados a essas questões. Existem pesquisas em relação aos impactos sociais e socioeconômicos nas áreas submetidas ao processo de regularização, inclusive, até impactos em relação à diminuição do trabalho infantil e alguns outros aspectos que demonstram a extensão dos benefícios causados numa área a partir do processo de regularização. Hoje, nós estamos fazendo estudos muito mais aprofundados antes de iniciarmos o trabalho de regularização para que possamos avaliar essas melhorias de uma maneira bastante criteriosa e com dados fundamentados. Assim, vamos poder monitorar com mais exatidão a evolução destes impactos positivos. Porém, como são pesquisas implementadas há pouco tempo, ainda não podemos divulgar esses números porque eles ainda não foram medidos em todas as fases do processo. Rets - Você pode citar um caso, como exemplo, das mudanças ocorridas em alguma localidade onde vocês trabalharam?André Albuquerque - A gente pode falar do jardim União, em Curitiba, Paraná. Quando iniciamos o trabalho, a área estava sem água e sem energia elétrica, com problema de interdito proibitório em relação ao conflito que existia entre proprietários, ocupantes e a empresa pública. A COHAB [Companhia de Habitação Popular de Curitiba] estava há seis anos tentando fazer a mediação e quando entramos no processo fizemos a mediação do conflito - o acordo judicial foi homologado e os moradores assinaram os contratos. Foram mais de 800 assinaturas em menos de 40 dias e, a partir disso, conseguimos implementar, em parceria com o governo, rede de água, energia elétrica. Conseguimos abrir espaço dentro da área para implantação de uma creche e, com os recursos gerados pelo projeto, implantamos meio fio em diversas ruas e conseguimos fazer com que alguns moradores recuassem muros para adequar os lotes ao projeto urbanístico para que o ônibus pudesse fazer a curva e circular pela principal avenida da comunidade. Enfim, acho que o Jardim União pode ser um grande exemplo de como a nossa intervenção promove desenvolvimento nas comunidades com as quais trabalhamos. Rets - Em que fase e como o componente desenvolvimento econômico é inserido no projeto? André Albuquerque - Esse componente é inserido desde o início; a partir do momento que estamos convencendo a comunidade de todos os benefícios gerados pela regularização. Esse componente também é objeto de discussão com as instituições interessadas no processo de regularização. Em todas as fases do trabalho, mostramos que há um desenvolvimento da comunidade como um todo neste sentido. Isso acontece inclusive em relação ao ganho da Terra Nova com o trabalho de regularização. Deixamos muito claro a todos a importância de sermos remunerados por esse trabalho, pois é a partir desse ganho que poderemos expandir a nossa atividade não somente na questão da regularização, mas também, em atividades de geração de renda para a própria comunidade e a população está disposta a pagar por tudo isso. Rets - Você pode dar um exemplo de como o componente do desenvolvimento econômico foi inserido? E qual foi o resultado? André Albuquerque - Na realidade, no nosso modelo a pessoa tem que pagar para adquirir o lote. Ele não recebe de graça, como nos projetos do governo. Eu acho que isso, de alguma maneira, estimula as pessoas a se desenvolverem economicamente para poder dar conta de pagar as parcelas e das outas obrigações. Gerar renda familiar; existe estímulo nesse sentido. Nós ainda não conseguimos implementar os projetos de geração de renda, ou melhor, implementamos em algumas áreas, mas não da maneira como gostaríamos. Queremos projetos de geração de renda que incentivem o desenvolvimento econômico. Queremos estabelecer parcerias com instituições de microcrédito para potencializarmos ações de desenvolvimento empresarial nas comunidades, tais como as de microcrédito produtivo. A gente percebe que existe um desenvolvimento, de maneira geral, na própria área, e que a organização comunitária, de alguma forma, promove isso. E há espaço para mais. Mas ainda estamos muito aquém daquilo que sabemos que podemos fazer com outras parcerias e é isso que estamos buscando nesse momento. Queremos arrumar outras parcerias para imprimir mais velocidade ao desenvolvimento econômico que já acontece para que essas áreas se desenvolvam de maneira mais rápida. Rets - Na sua opinião, quais são os principais problemas que a falta de regularização fundiária provoca?André Albuquerque - Na realidade, o problema da irregularidade está associado a diversos outros. Existem problemas sociais comuns nas áreas de baixa renda, nos assentamentos precários, que são problemas de saúde, violência e de ordem econômica. Uma coisa acaba interferindo na outra. No processo de regularização, é preciso buscar resolver essas questões e criar espaço dentro dessas áreas que possibilitem a entrada de equipamentos públicos, creches, escolas, postos de saúde. Rets - O que significou receber o prêmio Changemakers?André Albuquerque - Significou um reconhecimento internacional de uma instituição que tem sido uma grande parceira, que nos auxilia muito. Para nós, esse reconhecimento permite darmos mais visibilidade ao nosso trabalho e atrair a atenção de novos parceiros que se envolvam nesse movimento de transformação social e que possam fazer com que nossas atividades cresçam e se desenvolvam. Hoje, estamos enfrentando as dificuldades de sermos os pioneiros nessa atividade, mas penso que isso vai fazer parte de uma política pública de incentivo a outras empresas a trabalharem nesse setor, potencializando, assim, essa atividade em escala. Como somos novos, estamos consolidando alguns aspectos da metodologia etc. Acho que a abertura do mercado é uma tendência, mas de médio prazo. O trabalho da Terra Nova tem potencial para ser expandido, não apenas por nós, mas por outras iniciativas que entrem nesse setor. O que nós queremos, a partir desse reconhecimento, dessa premiação, é estabelecer parcerias que possam expandir o nosso trabalho não só para o Brasil, mas para outras partes do mundo que também necessitam desse tipo de atividade.
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