Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original:
Em abril, o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS) lançou o mais recente boletim Rio de Janeiro - Trabalho e Sociedade, com o título "Dez anos depois: como vai você, Rio de Janeiro?". Relembrando que há uma década o Rio vivia uma forte onda de violência (Acari, Vigário Geral, Candelária) e que esta onda fez surgir diversos movimentos e organizações não-governamentais, a publicação se propõe a fazer uma análise sobre o desenrolar da situação - tanto no estado quanto na cidade do Rio - ao longo dos últimos dez anos. Para isso, foram convidados os mais variados atores de políticas públicas e formadores de opinião, como jornalistas, políticos, escritores e militantes de ONGs. A percepção da maioria não poderia ser diferente: a violência continua sendo o principal problema da cidade e do estado.
André Urani, presidente do IETS, fala à Rets sobre as percepções expressadas no boletim, a legitimidade dos projetos empreendidos por ONGs e a necessidade de se criar espaços de debate e construção de propostas sólidas vindas do consenso do conjunto da sociedade civil.
Rets - Há dez anos, quando o Rio vivia uma forte onda de violência, diversas organizações e movimentos sociais surgiram como uma reação da sociedade a este fenômeno. Hoje, uma década depois, o que eles conseguiram influenciar de fato, em termos de políticas públicas?
André Urani - Acho que quando se fala nisso, fala-se de muitas coisas ao mesmo tempo. Claramente, as ONGs têm uma presença muito importante ao longo desse tempo, tendo se tornado de várias maneiras protagonistas de políticas públicas. O Viva Rio é um bom exemplo, tendo uma série de ações de aumento da escolaridade, mobilização permanente da sociedade, acesso à informática etc. Assim, é uma ONG extremamente interessante e forte. Há também o exemplo do AfroReggae que surgiu há dez anos em um contexto semelhante. Eles próprios se tornaram parceiros do poder público em várias dimensões de políticas públicas. O projeto Conexões Urbanas, do AfroReggae, leva uma série de coisas no campo da cultura para comunidades de baixa renda do Rio. Eu entendo isso, por exemplo, como política pública: ações que mesmo não sendo fruto da parceria de ONGs e governo, têm uma função pública, criam exemplos e modelos de políticas que podem ser replicadas. Ou seja, as organizações podem protagonizar políticas públicas, independente de estarem acopladas ou não ao Estado. E provaram isso ao longo do tempo, com a capacidade de lançarem projetos que tiveram importância muito grande para esta cidade e para este estado.
Rets - No mais recente boletim "Dez anos depois: como vai você, Rio de Janeiro?", a violência é apontada por quase todos os colaboradores como o maior problema no Rio de Janeiro hoje em dia. Além disso, o combate à violência é o mote de muitas das entidades que surgiram dez anos atrás. Houve alguma falha ou alguma coisa que as organizações não fizeram que poderia ter amenizado o quadro que hoje se vê no Rio de Janeiro?
André Urani - O que não faltou nestes 10 anos que o boletim contempla foram idéias, iniciativas, projetos. Acredito, sim, que tenha faltado capacidade de transformar projetos em processos. Isso se deve a uma certa incapacidade de se colocar em escala as iniciativas implementadas, o que passa por consolidar parcerias das entidades do terceiro setor entre si, com o poder público e com a iniciativa privada. Por exemplo, o programa de aumento de escolaridade que a Prefeitura levava junto com algumas ONGs (Campo, Viva Rio, Cieds) - e que dava bons resultados - foi interrompido pela atual administração. Ou seja, faltou continuidade - e isso mata, tem um impacto horrível sobre as ações. Se iniciativas como estas tivessem laços fortes - ou seja, se a sociedade estivesse convencida da utilidade do projeto, se fossem envolvidas um maior número de entidades neste tipo de política, se a opinião pública tivesse como acompanhar, entender, monitorar - não haveria governo ou troca de administração que pudesse fazer este tipo de arbitrariedade.
Muitas vezes a informação é pouco divulgada também. Falta conscientização da opinião pública sobre as iniciativas que estão sendo empreendidas. Falta maior controle social e participação. Isso tudo podia ser melhorado se o diagnóstico das iniciativas fosse mais claro, contínuo, transparente. E não só no terceiro setor - o mesmo vale para o poder público. Isso é uma crítica à nossa ausência de cultura de ações mais transparentes, que permeia tanto o terceiro setor quanto o governo. Além disso, as pessoas não gostam de ser avaliadas - o que é extremamente contraproducente, pois não dá margem a medições, melhorias, identificação do que está errado, do que pode ser aprimorado etc. Quanto mais se for capaz de disponibilizar informações sobre a pertinência das iniciativas que estão sendo realizadas, mais se fortalece as ações e fica mais fácil o estabelecimento de parcerias e de laços que as tornem sólidas.
Em resumo, não faltam idéias; falta escala e continuidade para as ações, e, para que isso aconteça, é necessário maior transparência, avaliação, comunicação, um esforço mais concentrado em dar confiança à sociedade de que um determinado projeto é oportuno. Isto é um nó cultural que nós temos.
Rets - Algumas organizações desapareceram e outras continuam atuando na cidade. O que determinou a permanência daquelas que continuam até hoje? Existe algum denominador comum que resulte nisso?
André Urani - As iniciativas que têm mais sucesso se deparam com o desafio da escala e da sustentabilidade. É um problema que tem que ser enfrentado não só pelo terceiro setor, mas por todas as iniciativas - seja de ONGs, de prefeituras, do estado, de iniciativa privada - que queiram promover mudanças significativas na sociedade.
Rets - Na sua opinião, só projetos de combate à violência são suficientes para abrandar o quadro que se vê atualmente no Rio?
André Urani - Obviamente não. Uma das coisas que a gente nota em se tratando de políticas públicas de combate à violência - ou de prevenção dela - é que são necessárias. Ninguém é louco de dizer o contrário. Mas não são suficientes. É preciso, ao longo disso, políticas públicas que reduzam as causas da violência. (Uma delas é a desigualdade de renda, que aumentou bruscamente nestes 10 anos.) Essas políticas, para se transformarem em processos, têm que ser integradas, combinadas. Não podem se limitar a uma faceta do problema. As ONGs podem se especializar em um tema (o que é bom para que sejam boas naquilo que fazem). Mas a efetividade dos projetos vai depender da capacidade de se articularem.
Outro dia estava conversando com o Teófilo, [Cavalcanti Neto], superintendente do Viva Cred [iniciativa de concessão de microcrédito, no Rio], e perguntei a ele se, sete anos atrás, quando eles começaram suas atividades, esperavam que tivessem mais escala hoje em dia (o Viva Cred tem cerca de dois mil clientes ativos hoje em dia). Ele me respondeu que sim, que imaginavam ter cerca de 50 mil clientes atualmente. Por que isso não aconteceu? Porque quem precisa de crédito precisa também de muito mais: precisa de capacitação, precisa de orientação para concretizar seu projeto etc. Seria preciso, então, que estes formadores estivessem junto com o Viva Cred, atuando em um projeto integrado.
Iniciativas pontuais só são capazes de fazer diferença na escala se se articularem. Nenhuma entidade - por mais competente, bem estruturada e bem intencionada que seja - vai dar conta de cuidar de um problema sozinha. Precisamos atuar na lógica da junção de esforços, das parcerias - o que não é a coisa mais fácil do mundo. Esta lógica pode significar renunciar ao protagonismo de um projeto - o que é difícil, pois as pessoas têm a cultura de valorizar a própria marca, vender seu peixe. Existe uma dificuldade de dividir. O slogan que resume o que eu estou dizendo é: mais vale ser sócio minoritário do sucesso do que majoritário do fracasso.
Rets - Quais foram os critérios para a escolha das pessoas que escreveram para o boletim?
André Urani - A idéia era chamar o maior número de pessoas que de uma perspectiva ou de outra foram protagonistas de políticas públicas que marcaram estes últimos dez anos no Rio de Janeiro. Tem o Cesar Maia, que é prefeito pela segunda vez; tem o Pedro Cunca Bocayuva, que é de ONG e é ligado ao PT; o Jailson de Sousa e Silva, que é militante do PT; várias outras pessoas ligadas ao PT. Tem também o Tito Ryff, secretário municipal de desenvolvimento econômico; o Moreira Franco, ex-governador do estado; diversos jornalistas (d'O Globo, Jornal do Brasil e O Dia, que são os três principais do Rio); pessoas da Academia ou ligadas a Sindicatos; lideranças empresariais, como Eduardo Eugênio Gouveia Vieira e o Marcílio Marques Moreira; entre outros. É um leque amplo, não queremos privilegiar este ou aquele ponto de vista. Esta é a proposta. Quase todos que foram convidados toparam escrever para o boletim.
Rets - Como o senhor destacou e como comenta no texto de apresentação do boletim, "o simples fato de quase todos os que foram convidados terem aceitado o convite para escrever neste boletim é um sintoma de que as coisas não andam tão mal assim. Existe, pelo menos, uma vontade latente e generalizada de se discutir o Rio de Janeiro - não apenas para compartilhar angústias, mas para correr atrás de soluções". De que maneira a reflexão produzida no boletim pode ajudar a melhorar a situação no Rio de Janeiro?
André Urani - Acho que é preciso encontrar espaços para a troca, para as organizações aprenderem a ouvir mais umas às outras, para perderem preconceito. Eu tive o privilégio de participar de algo parecido: a construção do plano estratégico da cidade. Eu era acadêmico e, nesta oportunidade, conheci pessoas e experiências que mudaram minha vida. Nunca teria sido Secretário Municipal de Trabalho do Rio se não tivesse essa passagem.
É bom lembrar que no ano que vem tem eleições. Será que ninguém vai apresentar alguma pauta que inclua a criação de empregos, a melhoria dos níveis de escolaridade e outras demandas? Isso precisa ser feito com uma legitimidade forte. Tem que se mostrar que a sociedade carioca quer isso ou aquilo, que está pedindo o que acha fundamental. Depois disso, se o governante municipal concordar com a relação de demandas, é preciso que a sociedade continue mobilizada para cobrar, continuar no esforço de participação destas políticas. Faz falta hoje no Rio espaços que possam produzir este tipo de consenso e eleição de prioridades e que, principalmente, mantenha-se mobilizado para monitorar o atendimento a estas demandas.
É preciso construir um espaço para compactuar. Mas, se esse espaço for só de uma organização ou de outra, não funcionará. Só dará certo se todas as organizações e os cidadãos interessados se mobilizarem. Talvez o grande obstáculo, como já disse, seja o da vaidade. Mas, repito, é preciso que espaços deste tipo sejam criados, para as instituições trocarem olhares, formatarem propostas em conjunto, para que se possa produzir solidez. Eles devem ser um palco que possa ser dividido por propostas diferentes, em cima de denominadores comuns.
Rets - Como se pode fazer que esta reflexão, ampla e abrangente, chegue aos tomadores de decisão da cidade e/ou do estado? Ou seja, como construir o espaço de que o senhor fala?
André Urani - O boletim é uma tentativa de fazer isso. Fizemos um lançamento - que ficou meio esquecido pela mídia e pelas pessoas pois aconteceu no mesmo dia das bombas no Leblon. Mas, não queremos comandar nada. Estamos sugerindo algo e queremos participar deste espaço, caso outros atores concordem. O grande erro do Plano Estratégico do Rio foi o fato de ele ter sido conduzido pelo governo. Espaços como esses têm que estar fora do governo. Os estados e municípios têm, sim, papel relevante. Mas, esta é uma função que tem que ser compartilhada. Pois, por melhor que sejam as intenções de um determinado governante, secretário etc., amanhã ou depois a administração muda. E, construir um espaço público que esteja fora das fronteiras e da dominação do Estado, não é coisa fácil.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer