Autor original: Fausto Rêgo
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O acordo Trips (Tratado sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionado ao Comércio Internacional), assinado em 1995, garantiu às empresas de nações filiadas à Organização Mundial do Comércio (OMC) a proteção de suas patentes nos demais países-membros. Como, além disso, falta ao Brasil uma legislação que combata a biopirataria, fica a ameaça de que uma empresa estrangeira venha cobrar royalties dos brasileiros pelo uso do nome de uma fruta nacional.
A preocupação com a questão motivou o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) – formado por 513 entidades dos povos da floresta (como seringueiros, índios e pescadores) – a empreender uma campanha contra a biopirataria, juntamente com a Amazonlink e o Greenpeace. A organização também contratou um escritório internacional de advocacia e conseguiu abrir um processo na justiça japonesa para contestar a concessão da patente do cupuaçu. A decisão deve sair até dezembro.
Adilson Vieira, secretário-geral do GTA, está otimista. Acredita que vai vencer o confronto judicial, o que representaria a perspectiva de reversão de outras patentes já concedidas, como a do ayahuasca (bebida derivada de uma planta amazônica e utilizada por algumas comunidades tradicionais em cerimônias religiosas de cura), da andiroba e da copaíba. “Se ganharmos lá, vamos criar jurisprudência e poderemos reverter isso”, confia.
Um dos principais objetivos da campanha é pressionar as autoridades para que se crie uma legislação que defenda a biodiversidade brasileira e os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas. “Hoje em dia, a exploração dos recursos naturais e da própria cultura não garante nenhum direito a essas comunidades”, lamenta.
Rets - Qual é a brecha jurídica que permite a uma empresa registrar comercialmente o nome de uma fruta ou semente?
Adilson Vieira - O problema é que o Brasil não tem uma lei que proíba a biopirataria. Existe uma proposta da então senadora Marina Silva [hoje ministra do Meio Ambiente] e também outra de um deputado de Pernambuco que foram engavetadas. O projeto da senadora Marina [PLS 306/95] era muito bom, foi discutido com segmentos sociais da Amazônia e de outras regiões do país, garantia o acesso aos conhecimento tradicionais e estabelecia limites éticos para a defesa desses conhecimentos. O governo Fernando Henrique Cardoso não quis apoiar esses projetos e criou a Medida Provisória 2186-16, que não qualifica o crime, nem estabelece pena. Isso é uma brecha enorme para qualquer empresa se apropriar do nome. Como nenhum país tem leis específicas contra isso, essa questão vai sendo regulada pela Organização Mundial do Comércio, pela lei do mercado – o dono é quem registra primeiro, quem é mais esperto. Claro que isso, muitas vezes, passa também por uma questão de falta de ética. O que está ocorrendo é como se eu registrasse o nome José e passasse a cobrar de todo mundo que quisesse usar esse nome. E isso acaba criando um fator complicador, do mesmo modo que a Monsanto querendo cobrar royalties dos agricultores que produziram soja transgênica. Então a empresa japonesa pode mandar executar uma cobrança aqui mesmo, com base na omissão da própria lei brasileira.
O cupuaçu é uma das frutas mais populares da região amazônica e só existe lá. As frutas são universais, ninguém vai registrar o nome morango porque não faz sentido. Como o cupuaçu é uma fruta pouco conhecida, eles usaram essa esperteza. Imagino que conheçam bem a fruta e estejam apostando no potencial de expansão do consumo.
Rets - A Embrapa já tem o registro de um derivado, o cupulate, que é o chocolate de cupuaçu. Esse registro é anterior ao dos japoneses, não?
Adilson Vieira - É verdade, a Embrapa tem o registro desse derivado. Mas o registro da marca cupuaçu faz com que todas as tecnologias derivadas tenham de pagar royalties. Isso vale para o cupulate, o bombom, o biscoito, principalmente se forem produtos de exportação, porque eles conseguiram também fazer o registro na Europa e nos Estados Unidos. E há outros casos também. O ayahuasca, por exemplo, já foi patenteado.
Rets - O prazo para contestação judicial nessas regiões já expirou. Isso, portanto, é irreversível?
Adilson Vieira - Nós entramos na justiça do Japão porque achamos que seremos vitoriosos. Se ganharmos lá, vamos criar uma jurisprudência e podemos reverter isso. O cupuaçu é um nome histórico, indígena. Se os japoneses tivessem inventado, tudo bem, mas não é o caso. A justiça japonesa deu um prazo até dezembro para tomar uma decisão. Contratamos um escritório de São Paulo que tem uma filial no Japão [Baker & McKenzie] e eles estão acompanhando o processo. Se depender do GTA, o cupuaçu vai continuar sendo nosso, dos brasileiros, das populações tradicionais. A gente acredita que é possível fazer essa reversão, assim como a de todos os outros produtos da nossa floresta.
Rets - Será uma decisão final ou caberá recurso?
Adilson Vieira - Parece que não caberia recurso.
Rets - Qual tem sido a mobilização em torno dessa questão e de temas como a biopirataria e a propriedade dos conhecimentos tradicionais?
Adilson Vieira - A gente está fazendo várias articulações – com o governo e com organizações da Europa, do Japão e dos Estados Unidos. Ainda neste mês, faremos uma manifestação no Senado para pressionar e acelerar a discussão de uma lei que garanta os recursos genéticos. A outra vertente dessa atuação é mobilizar as organizações internacionais. Amanhã [a entrevista foi realizada no dia 7 de maio e a reunião estava marcada para o período de 8 a 11 de maio, em Washington] teremos a reunião anual da Aliança Amazônica, onde esse tema vai ser discutido. A Aliança Amazônica é uma coalizão de movimentos sociais – entre eles o GTA, a Comissão Pastoral da Terra, a Amigos da Terra e outras entidades – que atuam em prol das populações tradicionais, no sentido de pressionar as grandes corporações internacionais. O objetivo é discutir uma estratégia de atuação contra o problema da biopirataria, usando como exemplo o caso do cupuaçu.
Rets - E qual tem sido a postura do governo brasileiro?
Adilson Vieira - O governo, em reunião que fizemos com o Itamaraty, apóia a nossa iniciativa. O problema é que falta um amparo legal para que se possa adotar alguma medida contra essa questão. Como não existe legislação a respeito, fica difícil tomar uma atitude. O que o Brasil poderia fazer de imediato era manter um contato com o governo japonês para conseguir apoio à nossa iniciativa na justiça.
A biopirataria ainda é um tema muito novo, uma questão que entrou em discussão recentemente, quando uma Comissão Parlamentar de Inquérito começou a fazer uma investigação que foi mais voltada para as rotas do tráfico de animais. Existe em todo o país uma falta de estrutura de fiscalização. Na semana passada foi preso em Belém (PA) um estrangeiro com várias arraias para exportação. Como não existe legislação sobre isso, ele não é enquadrado como biopirata, e sim por crime ambiental. A Medida Provisória é bastante omissa em relação a isso. É preciso criar uma legislação ambiental mais adequada.
Rets - Que tipo de iniciativas prevê a campanha?
Adilson Vieira - A campanha tem várias vertentes. Uma delas é de caráter pedagógico. No mês passado, fizemos durante dois dias uma manifestação no município de Presidente Figueiredo (AM) e tínhamos uma faixa que dizia: “O cupuaçu é nosso”. Cerca de dez mil pessoas assinaram essa faixa, que nós queremos levar para o Senado, para a reunião anual da Organização Mundial do Comércio, para consulados, como forma de protesto. Distribuímos folhetos sobre biopirataria e tentamos conscientizar a população sobre isso.
O outro aspecto é o político, de fazer pressão para que o governo brasileiro tenha uma legislação para esse tema e desperte para a sua importância. É dizer ao povo quais são os aspectos envolvidos; que, hoje em dia, a exploração tanto dos recursos naturais como da própria cultura não garante nenhum direito a essas comunidades.
Outra coisa é conscientizar a sociedade sobre a biopirataria, que muitas vezes resulta em degradação ambiental. É essa conscientização que pode motivar a criação de uma legislação ambiental. Se o Brasil aprovar uma legislação desse tipo, pode ser líder de um processo de mudança nos acordos internacionais e nessa cultura que permite que esse tipo de coisa aconteça. O Brasil tem tudo para assumir esse papel e puxar uma discussão dessas.
No final deste mês, vamos a Brasília para expor produtos da Amazônia e levar a faixa com as dez mil assinaturas. Vamos distribuir panfletos aos deputados e senadores, falando da realidade dessa apropriação indevida e mostrando a necessidade de que os congressistas se empenhem nessa luta.
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