Você está aqui

Terceiro setor e projetos sociais em música

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião

Magali Kleber*


Como educadora musical do ensino superior tenho observado e me preocupado com as configurações sócio-culturais que vêm se estruturando paralelas ao nosso trabalho desenvolvido nas universidades. Um olhar mais atento aos discursos correntes da mídia, levou-me a uma pontual atenção e reflexão sobre o terceiro setor e seus desdobramentos nos movimentos sociais nas esferas institucionais de educação e cultura. Ao trilhar por este trajeto, pude constatar que a afirmação desse novo perfil da sociedade civil fornece um importante material sobre a vida social contemporânea, consistindo-se, também, em uma fonte de aprendizado sobre o modo de viver e conviver das pessoas que compõem a trama complexa da sociedade.

As organizações do terceiro setor ocupam um espaço importante nas iniciativas que tratam de questões relacionadas à exclusão e desigualdade sociais e os desdobramentos dessas iniciativas estão incidindo em campos emergentes de trabalho, na educação, na cultura, enfim, nas diversas esferas e dimensões da sociedade. Trata-se de um espaço que carece de um acompanhamento no sentido prático e conceitual para que se conheça melhor os mecanismos presentes nesta dinâmica e para que os conhecimentos construídos subsidiem decisões nas diversas áreas afins.

Muito há que se conhecer sobre o terceiro setor nas diferentes áreas do conhecimento. Estimulada por questões a serem desveladas, optei por realizar o meu trabalho de doutoramento, em andamento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, abordando dois eixos: projetos sociais e educação musical acerca do papel da música como eixo condutor em projetos sociais. Porque a música tem ocupado um espaço de destaque nos projetos que buscam, primordialmente, o resgate da dignidade e o pleno exercício da cidadania de jovens adolescentes em situação de risco.

Minha observação empírica apontou uma significativa quantidade de projetos sociais ligados à educação, arte e cultura. O trabalho desenvolvido por ONGs tem revelado uma importante ligação com a dimensão cultural das comunidades envolvidas prevalecendo como objetivos primordiais o resgate da dignidade humana e o exercício da cidadania plena, prevalecendo o aspecto coletivo. A cultura é vista como um importante meio de reconstrução da identidade sociocultural e a música está entre as atividades de significativo apelo para a realização de projetos sociais, principalmente com os jovens adolescentes. Os projetos sociais que trabalham com música trazem à tona a discussão sobre uma forma de exclusão relacionada com a dimensão simbólica e com os valores presentes na cultura de cada indivíduo ou grupo.

Assim, nessa perspectiva o conceito de cultura alinha-se com a perspectiva de Stuart Hall (Hall, apud Nelson, Treichler e Grossberg, 1995, p.15) que toma a cultura como “o terreno real, sólido, das práticas, representações, línguas e costumes de qualquer sociedade histórica específica”, contemplando assim, “as formas contraditórias de senso comum que se enraizaram na vida popular e ajudaram a moldá-la” (ibidem). Esta postura rejeita, portanto, a visão tradicional de cultura enquanto um corpo estável e inquestionável de valores e práticas a serem reproduzidos e transmitidos às novas gerações.

Afunilando um pouco mais, o foco de interesse dos projetos voltados para a recuperação de jovens adolescente tem revelado uma grande incidência de atividades voltadas para a prática musical. Como exemplo podemos citar a matéria veiculada dia 09/11/2001 no jornal O Estado de São Paulo (site: www.estado.estadão.com.br/serviços, capturado em 03/11/2002) com a manchete “Brown ensina a arte de fazer música solidária”. Essa matéria, destaca dois projetos coordenado por Brown, a Escola de Música Pracatum e o Tá Rebocado, os quais funcionam como programas educacionais e comunitários para a população de bairro do Candeal Pequeno, região carente de Salvador. Segundo o coordenador os projetos têm a finalidade de “recuperar a identidade, a auto-estima” dos habitantes do bairro, além de propiciar, também, o acesso à educação formal. A música é o eixo condutor desse processo em que “os alunos aprendem a lidar com instrumentos e fazem aulas de percussão, composição, canto coral, entre outros” (ibidem). A reportagem informa, ainda, que os cursos são gratuitos e muitos músicos que lá se formaram participam de shows como músicos profissionais.

A prática musical existente no âmbito dos projetos sociais é vista e reconhecida em vários estudos (Fialho, 2003, Dayrell, 2002, Muller, 2000, Abromovay, 1999) como um significativo elemento de agregação e identidade cultural, principalmente dos jovens adolescentes. Constitui-se, assim, objeto de análise da área de Educação Musical. Situar o conteúdo e o sentido da prática musical da cultura juvenil, particularmente dos jovens submetidos a um processo de exclusão, extrapola questões de natureza teórica. A compreensão deve ser construída a partir da pesquisa empírica baseada em um trabalho de campo rigoroso e, portanto, em contato direto com essa nova realidade que se nos apresenta.

Um aspecto a considerar é a distância entre a Academia[1] e as práticas musicais que ocorrem nessas organizações populares. Entre universitários, a dedicação aos temas de pesquisa e de ensino permanece distante da realidade que dialoga com as demandas dessa faixa etária da sociedade. Corroborando com Castells


“somente restabelecendo as pontes de contato com nossa juventude... poderemos realmente construir nosso futuro. E somente se soubermos como os jovens pensam e vivem, e porque pensam assim, poderemos encontrar uma nova linguagem, fundamento de uma nova política” (Castells apud Abromavay, 1999, p. 10).


Muitos trabalhos na área têm revelado a importância da música na construção da identidade dos jovens da periferia urbana das grandes cidades. Um exemplo é o estudo de Abramovay (1999) sobre a juventude localizada na periferia de Brasília, que constata que os rappers, grupo e jovens que se dedicam à música – o rap – aparecem como contraponto às gangues[2] na medida em que “não se dedicam à prática de transgressões, não adotam rituais de admissão e ingresso, não possuem qualquer arranjo hierárquico” (Abramovay, 1999, p.135) e se assumem como “movimento”.

A música é o traço de união entre os rappers que falam em nome de uma geração estigmatizada, da crua realidade do seu cotidiano tecido por uma predeterminada exclusão (Abromavay, 1999, p. 135). É nesse contexto que a música aparece como uma “forma e um canal de expressão opcional à violência e à criminalidade” (ibidem, p. 181) A música dos rappers representa a música da juventude da periferia, em que os jovens músicos assumem o papel de agentes sociais que crêem em uma possível transformação, por meio de um canal de expressão – a música – capaz de denunciar a realidade violenta em que vivem. Neste sentido, a música parece ser um importante elemento de formação da identidade social juvenil e uma via para que os jovens se afastem das gangues e da criminalidade (ibidem, p.182).

Nessa perspectiva, a arte e, conseqüentemente, a música são entendidas como uma prática social e culturalmente constituída e que, assim sendo, seu caráter não pode ser visto fora da noção de sociedade como algo à parte das formas simbólicas e culturais manifestadas pelas pessoas.

Os critérios para se adotar uma visão cultural na análise desse contexto alinha-se ao pensamento de D’Andrade:


Dizer que algo é cultural é – no mínimo – dizer que este algo é compartilhado por um número significativo de membros de um grupo social (...)este algo deve ser reconhecido de uma forma especial (...) e deve ter o potencial de ser passado para novos membros do grupo, para existir, com alguma permanência, perpassando pelo tempo e pelo espaço”(D'Andrade apud Merriam, 1998, p. 13-14).


Ou seja, os movimentos sociais ao privilegiarem a dimensão artística imersa nas práticas socioculturais de seus atores, privilegiam, sobretudo, dimensões humanas que somente a arte pode fazê-lo. Apoiando-se nos autores citados, sabemos que o conhecimento do mundo não se dá somente por meio de conceitos logicamente organizados, mas também pela imaginação e pela intuição[3].

Os sentidos humanos interpretam e criam formas simbólicas por meio da experiência estética e artística que não podem ser reduzidas ao discurso verbal. Antes de serem explicadas precisam ser sentidas. Assim a prática musical situa-se em um contexto sócio-cultural e reflete concepções de mundo, de ser humano, de gosto e também de seus grupos sociais

O significado da música na vida das pessoas, nesta perspectiva, relativiza-se e contempla e possibilita uma construção carregada de subjetividade e de intersubjetividade. A música serve à vida e não prescreve um modo definido e limitado de viver mas, ao contrário, impele a uma atitude renovada frente às situações ordinárias do cotidiano.

Penso que um ponto importante que deve ser destacado quando se fala em práticas musicais em uma perspectiva educacional, é que ela esteja relacionada com as experiências e com a condição humana dos que a vivenciam. A arte e, conseqüentemente, a música não estão a serviço de ratificar uma realidade objetiva, mas antes de tudo, comporta as dimensões humanas caracterizadas por suas multiplicidades internas, suas personalidades virtuais, com a sua existência no real e no imaginário (Garm apud Morin, p.44), vivenciadas a partir do cotidiano, adentrando no mundo simbólico do ser humano.

Ao me deparar com este rico contexto e a significativa mobilização das organizações e programas sociais ligados às ONGs foi inevitável reconhecer que trata-se de um campo emergente e significativo para a realização de um trabalho em educação musical que se alinhe ao discurso que invoca a inclusão social tomando a educação e a cultura como dimensões da sociedade capazes de uma verdadeira transformação social.

Referências bibliográficas

ABRAMOVAY, Miriam (et al.) Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília.Rio de Janeiro: Garamond, 1999.

DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.28, n.1, p.117-136, jan/jun 2002.

FIALHO, Vânia. Hip Hop Sul: um espaço televisivo de formação e atuação musical. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Jacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

KLEBER, M. Teorias Curriculares e suas implicações no Ensino Superior de Música; um estudo de caso. Dissertação de Mestrado, São Paulo : UNESP. 2000.

KLEBER, M. “ABEM-SUL: Realizações e Propostas. Publicação on-line dos Anais do 3º Encontro Regional-Sul da ABEM, 2000, site: www.udesc.br/centros/ceart/hp/abemsul

MORIN, E. A cabeça bem feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

MÜLLER, Vânia. A música é, bem dizê. Ávida da gente: um estudo com crianças e adolescentes em situação de rua na Escola Municipal de Porto Alegre – EPA. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Música, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.

SOUZA, Jusamara. Musica, cotidiano e educação; pressupostos e temas fundamentaisIn: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL, IX, 2000, Belém. Anais... Belem: ABEM, 2000, p.69-78.

SOUZA, Jusamara. Currículo de Música e Cultura Brasileira: mas que concepções de Cultura Brasileira. Revista da Fundarte, Montenegro, v.1, n.1, p 22-25, 2001.

Notas

[1] O termo academia refere-se às práticas musicais realizadas no âmbito das Universidades.

[2] Segundo Abromavay (1999) “nos EUA, as gangues surgiram como uma resposta dos jovens provenientes de meios desfavorecidos e de famílias com dificuldades de integração social...[e] expressariam a busca de uma identidade social... No Brasil, a palavra gangue/galera tem sido utilizada genericamente para designar um grupo de jovens, um conjunto de companheiros e também uma organização juventude ligada à delinqüência...Pertencer a uma gangue/galera, fazer seu jogo de rivalidades são vetores de identidade grupal que podem levar tanto a novas formas de criatividade – a exemplo dos rappers- como à prática da delinqüência” (ibidem, p.93-95).

[3] Como a própria palavra indica – tueri= ver -, intuição é uma visão súbta, inefável, inexprimível. É uma possibilidade para a invenção, a descoberta, os grandes saltos do saber humano.

*Magali Kleber é professora universitária na Universidade Estadual de Londrina e doutoranda em educação musical na UFRGS, enfocando Projetos Sociais em Música.

 





A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer