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A História do jeito certo

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








"É de pequenino que se torce o pepino". O velho dito popular parece sintetizar uma antiga demanda dos movimentos negros: que a História brasileira seja contada do jeito certo, cosiderando a real participação das pessoas negras na construção da sociedade brasileira, a começar pelo que é ensinado nas escolas. As razões para essa reivindicação parecem simples e claras. É na época de colégio que as crianças são ensinadas o que devem acreditar e ter como referência para o resto da vida. É nesse momento que são formadas as personalidades e grande parte do conjunto de significações que acompanhará os futuros cidadãos e cidadãs. Corrigir o que de errado é transmitido, ensinar como os fatos se deram na realidade, valorizar quem é de direito, contar os maus atos de quem os cometeu, entre outras coisas, é o que vai fazer com que as pessoas possam, enfim, ter como verdade a própria verdade. Parece lógico – e justo.

Essa antiga reivindicação dos movimentos negros – a inclusão de conteúdos da história da África e da contribuição africana para formação da sociedade brasileira – está mais perto de se tornar realidade. Em 9 de janeiro de 2003, foi aprovada a Lei Federal 10.639, que prevê a inclusão da disciplina "história e cultura afro-brasileira" nos currículos dos ensinos fundamental e médio. Para que se torne palpável, a novidade será tratada por uma comissão no âmbito do Ministério da Educação, que ficará responsável por regulamentar e implementar a lei, discutindo formas de adaptação dos conteúdos programáticos das escolas.

De um modo geral, a notícia foi recebida com celebração entre as entidades ligadas à causa negra. A maioria considera um avanço para que as consciências das pessoas comecem a ser mudadas. É o que acredita Ivanir dos Santos, presidente do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap). "É um grande passo e um grande avanço para a luta do movimento negro", resume. Para a coordenadora do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN), Maria do Socorro Guterres, a novidade também deve ser valorizada. "Acho que essa lei é fundamental para o processo que vem se discutindo ao longo dos últimos 20 anos no movimento negro". Para ela, a importância reside especialmente no fato de a escola reforçar não só a exclusão das pessoas negras, mas também estereótipos, através dos livros didáticos e de conteúdos não-verdadeiros "sobre a participação do negro na formação cultural e econômica na sociedade brasileira".

Marcilene de Souza, presidenta do Instituto de Pesquisas da Afrodescendência (IPAD), acredita que isso reconhece que o ensino não estava sendo universalista como deveria ser. "A escola deve democratizar os saberes universais, e não só os europeus. Essa lei chega tarde, mas é extremamente importante na medida em que a escola é o espaço para que os conhecimentos universais sejam transmitidos". Amauri Mendes Pereira, pesquisador do Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAB) da Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, também comemora, mas aproveita para fazer recomendações: "Nossa posição em relação à Lei 10.639 é do maior entusiasmo, até porque tratamos e defendemos o tema desde a criação do centro de estudos. É preciso, no entanto, estabelecer os parâmetros da história afro-brasileira em comparação com a história nacional".

Amauri relata ainda a inteção de aproveitar o know-how de que o núcleo dispõe para ajudar na concretização do ensino da disciplina. "Já estamos desenvolvendo um curso de extensão universitária em convênio com a prefeitura de Campinas (SP), para formação de professores nessa temática e estamos buscando outras parcerias nesse sentido", diz. Outra organização que planeja ampliar projetos próprios ou servir de exemplo é o CCN. "Temos um projeto – chamado Quilombo Reistência Negra – desenvolvido em escolas localizadas dentro de comunidades quilombolas de dois municípios aqui do Maranhão – Alcântara e Itapecuru-Mirim –, onde fazemos ações educativas com crianças, professores e pais, abordando as manifestações culturais e religiosas ao longo da História, justamente para estimulá-los a preservar, valorizar", explica Maria do Socorro. A prática adquirida com o projeto poderá ser aproveitada em outras ações semelhantes.

É preciso prestar atenção, no entanto, para o fato de que todos os aspectos da tradição afro-brasileira devem ser levados em conta e devidamente valorizados, para que a desconstrução de estereótipos e do racismo possa se dar mais plenamente. "O ensino religioso nas escolas também deveria englobar outras religiões. Hoje em dia, quando se fala na disciplina 'religião' nas escolas, as pessoas só pensam na religião católica. Como fica a cabeça de uma criança negra de uma família praticante de Umbanda?", questiona José Marmo da Silva, coordenador do projeto Ato-Irê – Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, do CCN, realizado em quatro estados brasileiros – Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco e Bahia. Nesse sentido, a inclusão de "história e cultura afro-brasileira" nos currículos escolares é, sim, uma vitória a ser comemorada, mas deve-se continuar lutando para que outros temas e necessidades também sejam contemplados.

Quem é o professor?

A nova disciplina a ser ensinada nas escolas – justamente por ser nova, por não haver especialização no assunto e por não existirem universidades que formem para tanto – traz imediatamente a discussão sobre quem estará apto para ministrar tais classes. Esta promete ser a discussão necessária até que a lei seja implementada completamente. Em primeiro lugar, os professores devem ser capacitados para darem as aulas. Em segundo lugar, os livros didáticos, que dão os instrumentos primeiros do ensino escolar, devem ser reformulados.

Como isso vai ser encarado e feito é um dos problemas identificados para que a lei seja eficaz e tenha sucesso na contribuição para diminuir as formas de racismo. A preocupação é verbalizada por Eduardo Henrique Pereira de Oliveira, secretário executivo da Afirma. Para ele, "existe uma grande questão: o currículo das faculdades não forma professores para dar essa disciplina. Sequer os cursos de História o fazem. Vamos supor que de uma hora para outra as escolas devam ensinar iorubá. Quem vai dar essa disciplina? É a mesma coisa para a 'história e cultura afro-brasileira'. Se não há pessoas aptas para isso, como vai ficar?", defende ele, para quem esta é uma questão sutil, que não está sendo discutida.

Sua preocupação encontra eco na presidenta do IPAD, Marcilene de Souza. Segundo ela, existe um problema estrutural. "As universidades, incluindo os cursos de História, nao tiveram o cuidado de contemplar conteúdos específicos sobre a cultura e a história afro-brasileira", diz Marcilene. Ela defende ainda "que é preciso sublinhar a necessidade de cursos de capacitação para professores da rede de ensino – e não só palestras ou seminários, cursos mesmo –, além da criação de referências bibliográficas, ou seja, conteúdo apropriado para os livros didáticos. Segundo a presidenta do IPAD, ONGs e especialistas ligados aos movimentos negros podem dar grande contribuição para formação dos mestres, utilizando o que tratam nas suas práticas diárias. O pesquisador (CEAB) Amauri Mendes Pereira tem preocupação semelhante e diz que "não basta ter a lei: é preciso ter um plano, pois existem milhões de educadores que precisam ter essa transversalidade em história afro-brasileira".

Segundo o pesquisador, "há várias iniciativas desse tipo por parte de organizações do movimento negro em torno das relações sociais, da arte etc., mas tudo de maneira muito restrita, em cursos de curta duração. Não existia demanda porque não havia o incentivo da rede pública. E não havia uma continuidade, nada era feito dentro de um planejamento, uma previsão orçamentária. Por essa razão não se montavam cursos mais amplos e de maior investimento, a não ser quando havia alguma pessoa simpática a esses temas dentro de órgãos governamentais locais, por exemplo".

Para Eduardo, da Afirma, as referências e os registros da história e da tradição africanas – levantadas por Marcilene – existem, sim, e precisam apenas receber a devida atenção e valor. "Há quem defenda também que não existe história da África, que é a história dos vencidos. Isso é uma falácia. Se não se tem notícia, é porque não existe interesse. Conteúdo e registros existem, sim. Parte do racismo advém justamente do fato de os valores, da cultura, do passado, dos heróis, da filosofia e da mitologia africana não serem devidamente valorizados – e também da ignorância da existência dos mesmos", diz Eduardo.

Ele alerta também para o perigo de o ensino de "história e cultura afro-brasileira" ficar folclorizado, lançando luz somente sobre fatores como música, comida, ginga etc. "É importante valorizar papéis que não aqueles normalmente associados à contribuição africana, como o samba, a comida, a capoeira e todos aqueles ligados ao corpo, na verdade. Ou seja, é necessário ter cuidado para não reificar o folclorismo sobre os negros e revelar aspectos como a mitologia africana, que – tanto quanto a grega – tem suas metáforas filosóficas e políticas sobre a vida cotidiana", exemplifica Eduardo.

Ivanir dos Santos, do Ceap, é da opinião de que a existência desses "problemas e cuidados a serem tomados não quer dizer que a lei não seja um avanço. Não acho que corra o risco de se cair no puro folclore sobre a tradição e a cultura negra". Ele considera que medidas como a concessão de bolsas de pós-graduação em História da África e a reciclagem de professores seriam importantes para a aceleração da mudança que a lei pode provocar. "Além disso, é fundamental o interesse do Estado. Quando ele quer, ele faz. Se houver esse interesse, em cinco ou seis anos teremos toda a sociedade voltada para isso".

Marcilene também ressalta que os governos devem estar empenhados para a efetivação da lei, que corre o risco, se a sua implementação não for bem conduzida, de perder a eficácia e não promover a mudança estrutural que a norma pretende.

Se as coisas não forem feitas do modo correto, que possa verdadeiramente trazer uma contribuição e uma mudança no tratamento da questão, meu medo é que os legisladores digam no futuro que não deu certo, pois não tinha história a ser contada, a ser passada. Existe uma ignorância muito grande sobre esse assunto no país. A base do racismo no Brasil é a ignorância. Precisamos de recursos humanos bem preparados, para que a disciplina seja bem dada, e para que não se erre", diz ela, com o engajamento, a preocupação e o conhecimento de causa de que os futuros professores precisarão.



Maria Eduarda Mattar

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