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Praia a ser reservada

Autor original: Marcelo Medeiros

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A calmaria da praia do Batoque, localizada no município de Aquiraz, no Ceará, não reflete a luta dos moradores contra especuladores imobiliários pela criação de uma reserva extrativista. Depois de ameaças de morte, queimas de quiosques e brigas na Justiça, a associação de moradores do local, assessorada por ONGs e pelo Ibama, entrou com o pedido de criação da Reserva Extrativista do Batoque - que lhes garantiria o usufruto da terra, cuja propriedade fica sendo da União. Para lutar pela sua aprovação, foi criada uma campanha, e a comunidade agora aguarda ansiosamente a decisão do Governo Federal. Seria a primeira reserva extrativista em todo o nordeste.


O município de Aquiraz fica a 54 quilômetros ao sul de Fortaleza e possui belas praias, muitas delas hoje sede de complexos turísticos de luxo que deslocaram os nativos de seus terrenos com pouca ou nenhuma compensação. A do Batoque - com 13 quilômetros habitados por 456 moradores que sobrevivem basicamente da pesca e agricultura - quase se tornou mais uma delas.


Os conflitos de terra no litoral cearense começaram no final da década de 1970 e início da de 1980, durante o processo de construção de casas de veraneio por parte da classe média da capital. A busca por novas praias e terrenos baratos resultou em loteamentos desordenados e conflitos com as populações já estabelecidas – algumas há séculos.


Depois das residências, foi a vez dos grandes hotéis investirem e mais brigas surgiram. Foram comuns casos de títulos de propriedade concedidos a empresários que nunca haviam visitado as comunidades. “Algumas se organizaram e se mantiveram, outras foram obrigadas a se mudar”, lembra Rosa Martins, do Instituto Terramar, que apóia diversas associações de moradores do litoral cearense desde a década de 1980.


No Batoque não foi diferente. Os problemas começaram ainda no fim dos anos 70, quando os nativos venderam coqueiros das praias a fim de obterem renda extra. O empresário que comprou as árvores passou a impor regras como proibição de venda de cocos, plantações e até o controle de construção de casas de filhos de moradores nas terras onde estavam os coqueiros. Anos depois surgiram outros empresários se dizendo donos de terras, mesmo sendo desconhecidos pela população local. Eles combatiam qualquer forma de organização comunitária que fosse de encontro aos seus interesses.


Associação, processos e ameaças









As invasões se sucederam com poucas contestações até 1989, quando foi formada, com ajuda do Centro de Promoção e Defesa de Direitos Humanos (CDPDH) de Fortaleza, a associação de moradores da praia do Batoque. No mesmo ano foi promovida uma Ação de Interdito Proibitório para que a integridade da posse dos terrenos dos moradores fosse resguardada.


Dois anos depois a organização e o processo na justiça renderam queimas de quiosques onde moradores vendiam comidas e bebidas a turistas e até mesmo da capela da comunidade. A acusação recai sobre o empresário Miguel Gazineu, que não foi encontrado pela Rets para comentar o assunto. Desde então um processo de indenização está na Justiça cearense.


Mesmo com os processos e as conquistas que a associação de moradores conseguiu para a comunidade - como casa de farinha, loja de material de pesca e telefone público - alguns moradores não a apoiaram e arranjaram meios de vender terras. Uma prática comum era desmatar uma área com o argumento de que irá usar o terreno para plantações e logo depois o vende. “Eles sempre recebem uma mixaria. Até carro velho aceitam”, diz Maria Odete Martins, que por nove anos presidiu a associação, deixando o cargo no ano passado. Ela mesma explica as conseqüências desse processo: “Em outras praias há cinco famílias morando numa mesma casa por causa de vendas de terrenos. Não queremos isso aqui”.


Por sua liderança na comunidade, Odete já foi ameaçada de morte. Em 1993, Miguel Gazineu, um dos que se diziam donos das terras, chegando a apresentar escritura, invadiu sua casa e a ameaçou. Ano passado, nova tentativa de intimidação foi feita contra ela por um morador do Batoque. Odete o acusa de ser “capanga” do empresário.


O uso de violência e ameaças pelos especuladores já não são mais comuns, diz Rosa Martins: “Hoje eles agem mais por meio do poder econômico e político, conseguindo facilidades em cartórios e oferecendo presentes a moradores para conseguir apoio”. A tese é comprovada por Odete, que reclama de tentativas de desestabilizar a associação feitas por moradores não simpáticos à criação da reserva.


O último problema com a posse de terras envolveu a construtora Odebrecht, que em 1999 havia se interessado em comprar terras para erguer um resort. De acordo com os moradores, eles seriam deslocados para as dunas da praia, onde não teriam acesso à lagoa do Batoque, de onde tiram boa parte da pesca. Além disso, perderiam o direito de manter os 20 quiosques existentes na praia, assim como o de pescar e plantar. A operação, porém, não chegou a ser concretizada, pois os vendedores não conseguiram apresentar títulos de propriedade à empresa entre outros problemas surgidos.


Criação da Reserva Extrativista


Como a ação de interdito não surtiu o efeito desejado, a comunidade, depois de muito debate com técnicos do Ibama, decidiu solicitar a formação de uma Reserva Extrativista no fim de 1998, por acreditar que essa forma de gestão era a mais apropriada e devido ao fato da maioria dos moradores terem assinado um abaixo assinado a favor da iniciativa. Esse tipo de área de preservação por enquanto só existe em 56 áreas de floresta da região norte.


Sua vantagem é depender da participação da comunidade em seu processo de implementação e permitir o uso sustentável dos recursos naturais, apesar de não garantir a propriedade, mas, sim, a concessão de uso de terra da União por tempo indeterminado desde que as atividades estejam dentro das regras de uso, formuladas pelos próprios moradores.


“É uma forma de garantir a permanência de populações tradicionais na terra sem prejudicar o meio ambiente. Além disso, por manter a população sempre discutindo, é uma prática de cidadania”, explica Águeda Coelho, técnica do Núcleo de Educação Ambiental do Ibama do Ceará. Os moradores também poderiam explorar mais o turismo ecológico, bem como cobrar taxas a quem quisesse entrar na reserva. “São ótimas fontes de recursos para a comunidade”, afirma José Batista de Sá, secretário executivo do CDPDH, que hoje dá assessoria jurídica e administrativa à associação.


Todas as etapas para a implementação já foram cumpridas e agora a comunidade aguarda apenas a sanção do processo pela Presidência da República. De acordo com o Ibama, essa iniciativa já gerou demanda em outras comunidades pela criação de mais reservas extrativistas. De acordo com Batista de Sá, o processo de criação da reserva diminuiu os conflitos pela terra no Batoque, mas eles ainda não terminaram. E a demora na aprovação pode minar a resistência dos moradores. “A comunidade está cansada de ficar lutando contra a ação de especuladores”, lamenta.


A respeito disso, Odete não desanima e tem a resposta pronta: “vale a pena lutar por algo que é justo e é nosso, de nosso país. Não é por causa de ameaças que devemos baixar a cabeça”, finaliza.


 


Marcelo Medeiros

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