Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() | ![]() |
![]() |
Conseguir trabalho, hoje em dia, não é tarefa fácil para boa parte da população brasileira, em dias nos quais a taxa de desemprego bate os 12,4%, de acordo com os dados referentes a abril, do IBGE. Porém, quando se fala em trabalho e emprego de pessoas com deficiências, a situação fica mais grave, esbarrando não só em problemas econômicos e conjunturais da atual realidade do país, mas também em limitações históricas da cultura brasileira. São falhas na formação da mentalidade da sociedade, que fazem com que a grande maioria das pessoas não perceba que limitação não rima com exclusão. De acordo com o Censo 2000 do IBGE, as pessoas com deficiências são 14% da população brasileira. Ou seja, trata-se de 24,5 milhões de pessoas que podem, sim, trabalhar, como qualquer outra pessoa, e cuja maioria, hábil para trabalhar, é alijada do mundo do trabalho, seja por preconceito (próprio ou externo), seja por medo de não aceitação, seja por desconhecerem suas reais habilidades etc.
Em termos de medidas oficiais para inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, o que existe são leis e convenções. A mais famosa – e que tem forçado muitas empresas a terem em seus quadros pessoas com deficiências – é a lei nº 8.213, de 1991, conhecida como a Lei de Cotas. A norma estabelece, em seu artigo 93, uma porcentagem mínima de pessoas com deficiências que devem ser contratadas por uma empresa, de acordo com o número total de seus funcionários (a lei é aplicada somente a instituições com mais de 100 empregados). Assim, as empresas que tiverem entre 100 e 200 funcionários devem empregar no mínimo 2% desse contingente com pessoas com deficiências. Para as que tiverem entre 201 e 500 empregados, esse percentual é de 3%; para aquelas com 501 até 1.000 trabalhadores, 4% devem ser pessoas com deficiências; e, finalmente, as empresas que tiverem acima de 1.000 funcionários devem preencher ao menos 5% do seu quadro com indivíduos com deficiências.
Além disso, os cargos públicos preenchidos via concurso têm um percentual reservado para as pessoas com deficiências, garantia surgida na Constituição Federal de 1988. Finalmente, o Brasil referendou a convenção 159 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1983, que traz definições específicas sobre pessoas com deficiências e seu acesso ao trabalho, que levam em consideração a necessidade de assegurar a igualdade de oportunidade e tratamento a todos os indivíduos.
Apesar disso, estima-se que das 24,5 milhões de pessoas com deficiências no Brasil, somente 1 milhão estão inseridas no mercado de trabalho. Muitas são as barreiras possíveis de se apontar para justificar esta realidade – como falta de capacitação profissional, inadequação dos espaços ou mesmo a própria limitação que alguma pessoa apresenta. Mas a maior delas é também a que ocasiona todas as outras: a formação da consciência da sociedade brasileira. As pessoas, de um modo geral, não pensam de modo inclusivo, de uma forma a incluir os indivíduos. E isso passa necessariamente pela educação que as pessoas – com deficiência ou não – recebem.
A grande deficiência
O psiquiatra Jorge Márcio Pereira de Andrade, presidente do DefNet – Centro de Informática e Informações sobre Paralisias Cerebrais, é dessa opinião. “Por que existem tantas pessoas com deficiências fora do mercado de trabalho, apesar de hábeis? A resposta é simples: o processo educacional brasileiro, excludente. Essa é que é a grande deficiência”, diagnostica Andrade. Cláudia Werneck, diretora-executiva da Escola de Gente – Comunicação em Inclusão, concorda. Para ela, antes de se pensar no porquê de empresas contratarem ou deixarem de contratar pessoas com deficiências, deve-se perceber que a questão é muito mais profunda, passando pelas consciências das pessoas, que na maioria das vezes não têm uma postura inclusiva, não pensam o ambiente e as relações interpessoais com essa preocupação. “A questão é muito mais ampla: existem barreiras invisíveis, de atitude, que fazem com que as pessoas com deficiências fiquem à margem de diversas coisas na sociedade, inclusive do mundo do trabalho. Me espanta o quanto a gente não percebe a grandiosidade disso tudo”, diz Cláudia.
Essa limitação no processo educacional brasileiro – o qual não integra, não coloca pessoas com e sem deficiências na mesma sala de aula, nas mesmas escolas, com os mesmos educadores e com conceitos inclusivos – forma cidadãos a quem falta consciência de que pessoas com deficiências têm os mesmos direitos e deveres que eles, são indivíduos como qualquer outro e têm apenas diferenças – assim como magros diferem de gordos, altos diferem de baixos etc. “Existe uma dificuldade de ver as pessoas com deficiências como detentoras de quaisquer direitos, como sujeitos de todos os direitos. Quando se enxerga isso, facilita a percepção de que elas também têm o direito ao trabalho, como eu e você”, acredita a diretora da Escola de Gente. Para ela, é preciso formar adolescentes e jovens para que, quando adultos, tomem decisões que facilitem a chegada de pessoas com deficiências no mercado de trabalho.
Este problema de debilidade de formação educacional – estrutural – acarreta outros – periféricos – que dificultam o acesso de pessoas com deficiências aos postos de trabalho. Questões como transportes, locais adaptados com rampas, uso do braille, dispositivos sonoros etc. são também limitadores da quantidade de pessoas com deficiências em empregos. Obviamente, esta falta de condições de acessibilidade – apesar da existência da lei 10.098, de 2000, que estabelece normas e critérios básicos para a promoção de acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência – é também fruto da falta de preparação dos cidadãos para conceberem ambientes e situações em que todos – com todas as possíveis diferenças – possam se sentir à vontade e incluídos.
Segundo Marta Gil, gerente da Rede Saci, adaptar um ambiente para pessoas com quaisquer limitações tem custos pequenos e beneficia não só tais pessoas, mas o conjunto da sociedade. “Quando uma empresa faz isso, por exemplo, seus funcionários percebem que a instituição é mais humana, que se preocupa com eles, e isso é um ponto positivo. Além disso, as adaptações normalmente feitas tendo como público-alvo as pessoas com deficiências beneficiam o conjunto da sociedade. É só nrepararmos: rampas, por exemplo, provavelmente serão usadas também por idosos, grávidas, pessoas obesas, indivíduos carregando peso etc.”, argumenta Marta.
Estratégias
![]() | ![]() |
![]() |
Entretanto a principal alegação de empresas para não contratarem pessoas com deficiências é a falta de capacitação para o trabalho. Nesse sentido, prover treinamento profissional parece ser uma das medidas prioritárias para as organizações que trabalham pela inclusão de deficientes. Cláudia lembra, no entanto, que é apenas mais um caminho. “Tenho medo de que se supervalorize a capacitação para o trabalho. De imediato, é importante, sim – afinal as empresas argumentam isso. Mas é preciso ver que é apenas um caminho, é preciso uma mudança mais profunda na mentalidade da sociedade, inclusive a das pessoas com deficiências”. Para isso, a organização que ela dirige, a Escola de Gente, desenvolve oficinas inclusivas, para formar cidadãos que tenham uma visão mais ampla sobre a questão. Para Marta, da Rede Saci, é importante também que os departamentos de recursos humanos das empresas estejam bem inteirados de conceitos como estes. “Muitas vezes, os funcionários de RH não têm informações para saber do que as pessoas com deficiências são capazes”.
Outra estratégia adotada por ONGs e tida como válida é a parceria com empresas, para onde são encaminhadas pessoas com deficiências depois de capacitadas por organizações dedicadas à inclusão desses indivíduos. A Rede Saci, por exemplo, é muito procurada por empresas interessadas em cumprir a lei. Assim, a entidade mantém em seu site um canal dedicado especialmente ao trabalho das pessoas com deficiências, com ofertas de vagas e disponibilização de currículos. Serviços como esse e parcerias com empresas ajudam não só para o aumento do número de pessoas com deficiências em empregos, mas também na reeducação das próprias empresas e seus trabalhadores, que aprendem a conviver com tais indivíduos.
Outro ponto tido como positivo é o exemplo de órgãos do governo. Além da reserva de vagas em concursos públicos, já aplicada atualmente, existe a intenção de que os cargos de confiança dos organismos do Governo Federal também tenham um percentual reservado às pessoas com deficiências. Isso já está sendo implantado de modo piloto na Secretaria Especial de Direitos Humanos, que criou o "Programa de valorização profissional da pessoa portadora de deficiência", do qual faz parte o estímulo às cotas nos cargos de confiança.
Para Jorge Márcio, do DefNet, outra questão que deve ser levada em conta para ampliar o leque de oportunidades das pessoas com deficiências é a informatização: “O aprendizado e o uso das TICs – Tecnologias de Informação e de Comunicação é indispensável. Ajuda essas pessoas a se inserirem mais plenamente”. Para isso, a instituição que ele preside desenvolve cursos de informática para deficientes, a fim de que, com isso, esses indivíduos possam vislumbrar ou procurar novas perspectivas de trabalho.
“Não são vasos de samambaia”
Essas são algumas formas de estimular a criação e uma maior incorporação de pessoas deficientes no mercado de trabalho. O fim, sem dúvida, é nobre e legítimo. Os meios, no entanto, é que precisam estar sempre sendo questionados. Por quê? Porque, no esforço de se adequar à lei, empresas podem simplesmente contratar profissionais com deficiências, sem que sejam adequados ou necessários à instituição. “As cotas nas empresas são válidas. O problema é como elas serão cumpridas”, alerta Cláudia. Preocupação compartilhada por Marta Gil, para quem “os funcionários das empresas precisam saber que as pessoas com deficiências não estão ali simplesmente para que as instituições se adaptem à legislação. Não são vasos de samambaia, que se coloca onde quer”. Ou seja, não se pode contratar deficientes simplesmente para cumprir normas, pois assim se foge totalmente à intenção última das cotas, que é promover a mudança, a inclusão de fato. Sem mudança de consciência, atos como esses são vazios.
Outro risco grande que se corre é fazer a discriminação ao contrário, ignorando fatores importantes para a avaliação de se uma pessoa é ou não um funcionário importante para a empresa. Ou seja, as pessoas com deficiências devem ter seu trabalho julgado por sua competência, não por sua limitação. Trata-se, portanto, da igualdade total de condições – tanto no acesso ao emprego quanto na possibilidade de ser incompetente. Em outras palavras, o emprego não pode se tornar assistencialismo. “A lei é fundamental, sim, mas as pessoas com deficiências devem ser recebidas por sua qualificação, em condição de igualdade com as outras. Tem que haver equiparação profissional, senão a pessoa fica numa empresa só por pena”, defende Andrade, do DefNet.
Também é dessa opinião Cláudia Werneck, que lembra que, de uma maneira geral, as pessoas com deficiências – pelas dificuldades por que passam e pelas discriminações que sofrem – tendem a se esforçar mais para provar seus valores e sua utilidade e, com isso, tornam-se, muitas vezes, “superfuncionários”. E isso, para ela, pode colocar sobre as pessoas com deficiências uma responsabilidade e uma pressão a mais. “A pessoa com deficiência tem que ter o direito de ser um mau profissional”, esclarece. Marta Gil completa o raciocínio: “Se precisar demitir, demite”.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer