Autor original: Fausto Rêgo
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Existem, hoje, quase US$ 80 bilhões do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) investidos em projetos diversos em todo o país. A informação é da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, uma articulação de 64 organizações da sociedade civil criada em 1995 para estabelecer um canal de comunicação com o governo e as instituições financeiras multilaterais, buscando compartilhar informações sobre políticas e projetos de desenvolvimento.
Uma das mais recentes iniciativas da Rede Brasil foi a constituição, anunciada no dia 22 de maio, da Frente Parlamentar em Defesa do Financiamento Público e da Soberania Nacional. A Frente, que conta, até o momento, com a adesão de 66 parlamentares – 60 deputados e 6 senadores –, terá o desafio de buscar uma participação mais efetiva do Congresso nas decisões que envolvam empréstimos de instituições estrangeiras como o Banco Mundial, o BID e o Fundo Monetário Internacional (FMI), de modo a evitar o risco de interferências na definição de políticas públicas no país.
Flávia Barros e Marcus Faro, assessores políticos da Rede Brasil, falaram à Rets sobre as atividades da organização, as dificuldades para vencer resistências e os avanços obtidos. Segundo eles, já houve progressos. As estratégias dos bancos para o país, até então sigilosas, começam a ser divulgadas. Por falta de estrutura e recursos, a Rede prioriza os grandes projetos do governo, mas existe interesse em criar condições para observar também iniciativas de organizações da sociedade civil. “Seria interessante pegar alguns casos, ter algum monitoramento sobre essas experiências mais diretas entre as organizações não-governamentais e as instituições de financiamento multilateral. Infelizmente não temos tempo, gente e trabalhamos com um orçamento muito enxuto”, lamenta Flávia.
Rets – A Rede Brasil surgiu em 1995. Como tem sido, desde então, o relacionamento com o governo federal. Vocês têm enfrentado dificuldade para obter informações?
Flávia Barros – Qualquer que seja o governo, não podemos ter uma visão monolítica. Mas havia, sim, uma certa resistência para tratar dessas questões. Nossos principais interlocutores são o Ministério da Fazenda e o Ministério do Planejamento, e a Fazenda era ainda mais fechada – talvez porque no Planejamento esteja o principal órgão que tem a responsabilidade de monitorar a atuação das instituições de financiamento multilateral no país [a Secretaria de Assuntos Internacionais – SEAIN]. Como ela acaba sendo mais exposta, é obrigada a manter uma relação maior com a sociedade. Mas conseguimos, fomos sendo bem-sucedidos no nosso diálogo com a SEAIN, que chegou a aproveitar algumas sugestões nossas. Em relação à questão da informação, por exemplo, já houve alguma diferença. Claro que ainda deixa muito a desejar, mas temos de reconhecer que houve uma melhoria na forma de tratamento das informações por parte deles.
Marcus Faro – Um dos resultados mais importantes que a Rede Brasil obteve nesse período foi conseguir tornar públicos os documentos de planejamento estratégico das instituições financeiras multilaterais, que eram tratados como sigilosos.
Flávia Barros – A divulgação das estratégias do BID e do Banco Mundial foi uma grande contribuição da Rede Brasil. Também há muito a ser feito nessa área, mas, quando se tem uma perspectiva histórica, nota-se que houve um avanço. Os processos e as decisões sobre as estratégias desses bancos sempre foram muito restritos, sem participação de mais nenhuma outra parte. O Senado é a parte que tem o poder de avaliar esses financiamentos, é quem aprova os recursos para esses financiamentos, mas comparece apenas na última hora, simplesmente para “carimbar” as decisões do Executivo, a não ser no que se relaciona à capacidade de pagamento. Uma das coisas que pretendemos com a criação da Frente Parlamentar é “empoderar” o Congresso, para que ele faça valer o poder que tem, mas não é exercitado.
A gente quer continuar garantindo o acesso à informação. Nós assumimos um papel que é do governo e deve continuar sendo. A Rede Brasil coletou informações, traduziu documentos e os tornou públicos. Lembro de uma reunião do BID em que, no final, entregamos ao próprio representante do BID no Brasil o documento traduzido com as estratégias deles para o país. E era um documento confidencial.
Com o Banco Mundial aconteceu algo semelhante. Eles fizeram, há alguns anos, um debate sobre um documento recém-lançado sobre pobreza, e uma das coisas que estavam em questão ali era justamente a transparência. Nós aproveitamos, então, para anunciar que estávamos distribuindo, do lado de fora, os documentos contendo as estratégias do banco. Foi uma piada geral, porque tivemos de esclarecer que o Banco Mundial mantinha sigilo sobre aquelas informações e nós achávamos que o acesso a elas era um direito de todos. Foi um bando de gente, até do próprio governo, correndo para pegar.
Rets – Você disse que entregou o documento com as estratégias do BID ao próprio representante do banco no Brasil. Qual foi a reação dele?
Flávia Barros – Ele reagiu com bom humor e até concordou que deve haver mais transparência. Depois disso, os bancos deram um passo à frente e já estão começando a publicar na Internet os relatórios de avaliação de suas estratégias. Outros países também pressionaram e eles estão revendo suas políticas de informação.
É algo positivo, mesmo que ainda tenhamos restrições à forma de divulgação, que ainda pode melhorar. Os documentos se tornam públicos depois de concluídos, então, agora, temos de nos concentrar no processo de preparação, que envolve uma discussão política.
Rets – De que forma a Rede Brasil atua?
Marcus Faro – A gente atua em diversas frentes: no Executivo, no Legislativo Federal e nas comissões, especialmente na Comissão de Orçamento. Atuamos também em parceria com organizações não-governamentais estrangeiras e temos parcerias regionais e nacionais com nossos filiados. Através dos membros da rede, desenvolvemos ações junto ao Legislativo estadual e municipal.
Rets – Essa atuação se volta apenas para financiamento de iniciativas do poder público ou também para projetos de ONGs?
Flávia Barros – Nós fazemos monitoramento de projetos do governo e de empresas privadas, mas alguns desses projetos contam com a participação de ONGs. Até o momento, a Rede Brasil prioriza mesmo os grandes projetos de governo, até porque não temos infra-estrutura para fazer mais. Mas acho que seria interessante pegar alguns casos, criar também condições para ter algum monitoramento sobre essas experiências mais diretas entre as organizações não-governamentais e as instituições de financiamento multilateral. Infelizmente não temos tempo e gente e trabalhamos com um orçamento muito enxuto.
Com relação ao setor privado, há uma tendência de programas e projetos que eram responsabilidade do Estado – que por isso era o tomador do empréstimo – acabarem sendo assumidos pelo setor privado, e esses recursos vão para as empresas. Tudo isso, então, fica muito mais complicado, porque o setor privado é muito mais fechado. Então estamos pegando alguns casos que apresentam problemas e estamos “puxando para a briga”.
Temos tentado criar condições para poder dar conta de uma maior diversidade de monitoramento. Há perspectivas.
Rets – E como a Rede Brasil se mantém?
Marcus Faro – Através do apoio de agências de cooperação internacional.
Flávia Barros – São fundações. Atualmente, a Ford Foundation, a Christian Aid e a Oxfam. Estamos buscando mais apoio, porque nosso orçamento é muito pequeno e a Rede não tem recursos próprios.
Rets – Esse trabalho depende de informações fornecidas pelo poder público. Com a mudança de governo, este ano marca um recomeço desse relacionamento. Vocês tiveram recentemente uma reunião com a SEAIN. Como foi a receptividade?
Marcus Faro – Temos tido uma relação boa, melhor do que no governo anterior. Eu ainda não estava aqui na época, mas sei que às vezes era difícil marcar reuniões, obter alguns documentos. Agora, o governo também não é a única fonte. Os próprios bancos têm suas políticas de informação e contamos ainda com as informações que são passadas por outras organizações, inclusive do exterior.
Rets – E de que forma a Frente Parlamentar vai poder ampliar essa capacidade de monitoramento? Afinal, hoje os financiamentos já são submetidos à aprovação do Senado.
Marcus Faro – Eles passam pelo Senado, mas é mais um procedimento burocrático do que uma ação política de fiscalização. Basicamente, o que tem sido considerado é se há capacidade de pagamento. Existem alguns pontos de ação sobre os quais é possível se debruçar: o primeiro é a representação dos interesses brasileiros na diretoria dos bancos. Lá existem pessoas indicadas pelo governo e que não prestam contas à sociedade civil. Por que não adotar regras para a nomeação dessas pessoas, com a previsão de audiências públicas?
Outra questão diz respeito às políticas de informação dos bancos. É freqüente que essas instituições violem suas próprias políticas e que um projeto seja aprovado rapidamente, sem que se tenha qualquer informação. Então, que o Parlamento atue para impedir a aprovação de projetos quando ocorrer essa violação.
O terceiro ponto é o planejamento estratégico do Banco Mundial e do BID. Os projetos financiados por essas instituições estão incluídos numa estratégia. Mas quais são esses interesses? Do Brasil? Dos sócios? É importante que a aprovação não seja feita de maneira pulverizada, mas dentro da compreensão dessa estratégia.
Temos ainda a questão da alavancagem financeira. Os bancos emprestam, mas exigem quase sempre uma contrapartida. Por exemplo: emprestam 60% dos recursos e exigem uma contrapartida de 40%. E o Brasil poderia usar esse dinheiro para outros fins, fazer um uso mais criterioso desses recursos.
E, por fim, o direcionamento do crédito interno. Eles acabam tendo o poder de direcionar o crédito interno. Em alguns projetos, os bancos dizem: eu dou 100, mas o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] vai entrar com 70. Se o Estado brasileiro tiver uma política de concessão de crédito, ela fica prejudicada por essa exigência.
Flávia Barros – Todos os programas e projetos aprovados no Plano Plurianual [PPA] vão ser alvo dos empréstimos e das “condicionalidades” desses bancos. O ano de 2003 vai ser muito importante. O governo promete que o processo do PPA vai ser participativo e a gente já vê uma mobilização das organizações para participar. O Inesc [Instituto Nacional de Estudos Socioeconômicos] promoveu recentemente um evento sobre o PPA, aqui em Brasília, e nós chamamos a SEAIN, que declarou a intenção do governo de garantir que o processo de discussão e elaboração das estratégias de assistência dessas instituições no Brasil ocorra em sintonia com o PPA. Mas isso não garante a transparência.
A Frente Parlamentar recém-criada já encaminhou dois requerimentos de audiência pública sobre as atividades dos bancos, para discutir seus efeitos sobre o PPA. Os requerimentos foram aprovados e o que se discute agora é como vão ser feitas essas audiências. Uma audiência pública já garante um instrumento para conseguir mais abertura e uma prestação de contas. O governo e os bancos estão sendo convidados para dar mais informações ao Senado.
Rets – Até o momento, dos mais de 60 parlamentares que já aderiram à Frente, a maioria pertence à base de sustentação do governo. Isso não pode comprometer uma atuação independente?
Marcus Faro – É impossível saber antecipadamente. Vai depender de como o processo político se desenrolar. Embora exista base de apoio, nada no Congresso é monolítico.
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