Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Pai, mãe, filha, tio, avô, primos, filho. Eles constituem não só aquela que é considerada a formação social mais básica e o núcleo mais importante para a formação do cidadão – a família. Com disposição para o trabalho, devido estímulo de políticas públicas, uso da terra e intimidade com a enxada, eles constituem também uma das atividades – apesar de carecer de reconhecimento – mais importantes para o país: a agricultura familiar. Com um peso enorme na produção de alimentos que os brasileiros consomem, os agricultores e agricultoras familiares produzem cerca de 40% do valor bruto da agropecuária nacional, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), e cerca de 70% dos itens da cesta básica, de acordo com estimativas.
Para que se entenda o que é considerado agricultura familiar, é bom esclarecer: normalmente são considerados agricultores familiares os proprietários rurais que contam apenas com a mão-de-obra da família nos trabalhos da lavoura – exceto em picos de safra, quando dispõem da contratação eventual de serviços de terceiros – e têm até 80% de sua renda oriunda da atividade rural. Hoje são 4,5 milhões de famílias, envolvendo uma população aproximada de 20 milhões de pessoas e gerando 77% dos empregos no campo, segundo dados do Departamento de Estudos Sócio-Econômicos Rurais (Deser). Além disso, a agricultura familiar representa cerca de 85% dos estabelecimentos rurais do Brasil, de acordo com o Censo Agropecuário do IBGE de 1995/1996. Sua maior concentração encontra-se na região Nordeste (com 50% dos estabelecimentos rurais familiares do país) e a menor no Centro-Oeste.
A capacidade de produção dos agricultores familiares é invejável: respondem por 84% da produção de mandioca, 67% da de feijão, 58% da de suínos, 54% da bovinocultura de leite, 49% das lavouras de milho, 46% das de trigo, 40% da produção de aves e ovos e, finalmente, 31% de todo o arroz produzido no país. Os dados foram divulgados recentemente pelo ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto. Ou seja, ressaltou Rossetto na ocasião, “boa parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros é produzida pelo braço forte e solidário do agricultor familiar”. "São responsáveis também por quase 90% da produção de frango no país", ressalta também Amadeu Bonato, coordenador-técnico do Deser, entidade que realiza pesquisas sobre e para as atividades agrícolas.
A atividade da agricultura familiar na produção dos alimentos contribui não só quantitativamente para aquilo que foi alçado à condição de prioridade governamental – o combate à fome –, mas também qualitativamente. Sua produção é aquela que normalmente vai parar nas mesas e nos estômagos da população – ao contrário do que acontece com o que é produzido pela agricultura patronal, que usualmente exporta. Pode-se dizer que essa é, então, uma das vantagens da agricultura familiar: o direcionamento da sua produção aos consumidores nacionais.
Outra conseqüência tida como vantajosa no incremento da atividade dos agricultores familiares é o desenvolvimento das localidades em que as propriedades estão inseridas. Toda uma lógica explica essa afirmação: agricultores e agricultoras familiares gastam seus lucros nas próprias localidades (comprando desde insumos para a produção até objetos pessoais), "reinvestindo" na própria comunidade, aquecendo a economia local. Além disso, ao se comprar de agricultores familiares, a riqueza é pulverizada. Pela sua própria capacidade de produção, agricultores familiares vendem em menor escala e mais pessoas acabam ganhando. No caso da agricultura patronal, os lucros são concentrados – poucos ganham mais – e investidos em poucos empreendimentos e/ou fornecedores etc. Tanto que "nos municípios em que a base da atividade é a agricultura familiar, nas áreas urbanas, a pobreza é menor", atesta o secretário-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Hilário Gottselig.
Aquecendo-se a agricultura local, os efeitos sociais também são fáceis de vislumbrar: em primeiro lugar, a pobreza do local é diminuída. Conseqüência direta disso, o êxodo rural decresce. Com o vislumbre de perspectivas no campo, a juventude, que normalmente é o maior contingente a deixar as áreas rurais, se anima a permanecer. Pesquisa feita pelo coletivo de jovens da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul/CUT) e pelo Deser com jovens rurais no Sudoeste do Paraná, no Oeste Catarinense e na região Norte do Rio Grande do Sul aponta que mais de 60% dos jovens querem permanecer “trabalhando na roça”, e esse termo significa mais do que somente produzir alimentos. Significa também organizar a produção, encontrar modos de comercialização própria, encontrar atividades nas cidades do interior etc.
O desenvolvimento local é acompanhado por uma outra vantagem proporcionada pela agricultura familiar, dessa vez relativa à saúde das pessoas: por não usar agrotóxicos em grande escala, a produção da agricultura familiar é mais pura do que aquela vinda de grandes lavouras. E justamente por usar menos substâncias tóxicas, não agride tanto o meio ambiente, sendo política e ambientalmente correta. Além disso, tem uma produtividade maior que a agricultura feita com máquinas e em grande escala, como é apontado por Gottselig. "Em uma mesma área, a agricultura familiar gera mais renda que a patronal. Por exemplo, para cada R$ 100 de riqueza gerada pela agricultura patronal, a familiar gera R$ 146", diz.
Na pauta
Mesmo com toda a pujança que promete, a agricultura familiar, como muitos outros segmentos da sociedade, historicamente não tem sido privilegiada como deveria nas políticas públicas. Hoje em dia, os principais pontos na agenda de reivindicações são o acesso à terra – em outras palavras, a famigerada reforma agrária –, o acesso a crédito e a criação da profissão de "agricultor e agricultora familiar". A questão do acesso à terra é tão antiga quanto fundamental: afinal, não se planta ou colhe sem terra. "Esse tema deve privilegiar tanto os que não têm terras quanto os que têm pouca e, por isso, ficam impossibilitados de usá-la apropriadamente (respeitando os períodos de descanso do solo). O acesso à terra não pode ser considerado só levando em conta quem não tem, mas também aqueles que não têm o suficiente para desenvolver a atividade direito", defende Paulo Petersen, diretor executivo da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA). Gottselig, da Contag, completa o pensamento, afirmando que a agricultura familiar "talvez seja o único setor com condições de aumentar ocupações de trabalho, não só com a existência de novos agricultores familiares – possibilitada com a desejada reforma agrária –, mas com a possibilidade de que os já existentes contratem mais gente, se crescerem".
Em virtude dessa capacidade de crescer, a formação de agroindústrias familiares também está recebendo atenção dos agricultores e das instituições que trabalham pelo seu desenvolvimento. As agroindústrias permitem que o trabalhador rural incremente seu produto, agregando valor a eles, fazendo com que subam verticalmente na cadeia produtiva e com que os agricultores deixem de ser meros fornecedores de produtos primários. Em suma, vendem produtos já manufaturados, tratados, o que faz com que lucrem mais do que lucrariam se vendessem só a produção bruta. Outra vantagem da agroindústria é a diversificação das atividades (os produtores não ficam tão dependentes de uma única coisa) e a possibilidade de empregar mais gente, dentro e fora da família.
Já o acesso ao crédito é uma das principais questões a serem atendidas, porque a sua falta prejudica os trabalhadores mais do que simplesmente a falta de dinheiro. "O crédito tem que ser barato e oportuno. Tem que chegar ao agricultor no momento em que ele ainda pode barganhar, negociar, investir na safra", ensina Gilso Giombelli, diretor financeiro do Sistema de Cooperativas de Crédito Rural com Interação Solidária, o Cresol, que conglomera 71 cooperativas de crédito locais do sul do país e tem mais cinco em constituição. "Paramos de aceitar novos membros, mas, se reabríssemos, teríamos imediatamente mais umas 20 cooperativas interessadas em se constituir", afirma Giombelli.
Por que tanto interesse pela formação de cooperativas de crédito? Porque são elas que viabilizam o acesso ao crédito barato – com taxas médias de 3%, muito menores que as aplicadas pelos bancos – e oportuno, ou seja, sem muita burocracia e mais rápido. Elas ganharam especial força depois de 1996, quando foi criado o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), ligado ao MDA. "Até então, o crédito agrícola era quase inviável para os agricultores familiares, porque tecnicamente fazia exigências incompatíveis com o modo de produzir dessas pessoas. Por exemplo, o crédito era associado ao uso de insumos químicos e era necessário um projeto técnico com emprego das tecnologias recomendadas pela Embrapa e outras instituições consultadas pelo governo. Ou seja, a agroecologia, a agricultura familiar não eram compatíveis", explica Petersen, da AS-PTA. Com o Pronaf, com regras mais adequadas para os agricultores familiares, os recursos puderam chegar a eles.
Atualmente, o governo está atento à necessidade e à importância que o crédito tem para a atividade e, no dia 14 de maio, anunciou novos recursos para o Pronaf. Para a safra 2003/2004, a agricultura familiar terá R$ 5,4 bilhões, contra R$ 2,2 bilhões da última safra – a maior oferta de crédito da história para o setor. Os recursos, que terão aumento de 145% em relação ao ano anterior, deverão ser liberados a partir de julho, quando será apresentado o Plano de Safra 2003/2004. O governo irá estimular a criação de mais cooperativas de crédito para facilitar a tomada dos recursos. O objetivo é ampliar em 40% o número de contratos do Pronaf de 1 milhão para 1,4 milhão, beneficiando cerca de 1,8 milhão de famílias. Bons auspícios. Porém o Pronaf existe somente por decreto federal e, para persistir independente de governos, para ser algo mais concreto, precisa virar lei.
Será uma segurança a mais para as pessoas que se dedicam à agricultura familiar, assim como será se as categorias profissionais de "agricultor e agricultora familiar" forem reconhecidas pelo Ministério do Trabalho. A mudança beneficiaria na medida em que resolveria entraves históricos como o enquadramento sindical desses trabalhadores e facilitaria a concessão de benefícios aos agricultores familiares, hoje classificados no sistema previdenciário como "segurados especiais", condição que se encerra em 2006. Seria mais um reconhecimento e mais uma garantia à atividade que, como resume Gottselig, "vem tendo um papel à margem das políticas públicas – e isso não condiz com a importância que ela tem para o país".
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