Autor original: Marcelo Medeiros
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Apesar da pouca idade e tamanho, Palmas, capital do Tocantins, já tem problemas de cidade grande. Os 170 mil habitantes dessa capital de 13 anos convivem com a violência e falta de serviços básicos como moradia adequada para todos, apesar de ter sido recentemente planejada. E quem tenta ajudar a melhorar a situação pode sofrer ameaças - como aconteceu com a voluntária do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Palmas (CDHP), Maria Aparecida Gomes da Silva, que foi seqüestrada no dia 19 de maio após investigar, junto com outros integrantes do Centro e representantes do Ministério Público, denúncias de espancamento de presos na Casa de Custódia da cidade.
Perto de sua casa, na periferia de Palmas, foi abordada por passageiros de um carro, que a obrigaram a entrar no veículo, fizeram ameaças e depois a colocaram no porta-malas, por onde ficou durante horas até ser abandonada em uma cidade afastada. Abalada com o episódio, Maria Aparecida, que também era conselheira tutelar, está temporariamente afastada das atividades do Centro de Defesa de Direitos Humanos por segurança. O caso já foi comunicado ao Movimento Nacional de Direitos Humanos, que encaminhou a denúncia à Organização dos Estados Americanos (OEA).
A suspeita recai sobre os policiais envolvidos com a repressão à tentativa de fuga da Casa de Custódia, mas ainda não há pistas, já que a vítima não reconheceu nenhum dos seqüestradores.
Nessa entrevista, Maria de Fátima Dourado, presidente do CDHP, fala sobre o seqüestro da colaboradora e as providências tomadas, além de comentar os maiores problemas da mais nova capital brasileira.
Rets - Como aconteceu o seqüestro de Maria Aparecida?
Maria de Fátima Dourado - Há tempos trabalhamos com casos de violência policial em Palmas. A Maria Aparecida, que é voluntária do Centro de Defesa, mora na periferia da cidade e lá recebe muitas denúncias de parentes de presos, que reclamam de maus tratos. No dia 13 de maio, uma terça-feira, houve uma tentativa de fuga na Casa de Custódia de Palmas, impedida pela polícia. Em seguida houve um princípio de rebelião, também impedido. Logo após controlarem os presos, os policiais mandaram os presos irem nus ao pátio do presídio para fazerem vistoria. Eram aproximadamente 100 detentos, que foram todos espancados. A polícia pediu para eles baixarem as cuecas e bateram nos "bumbuns", para não dizer coisas piores. Recebemos essas denúncias e logo na sexta-feira estivemos no presídio com o Ministério Público e o juiz da Vara de Execução Penal. Fizemos laudos de lesão corporal e constatamos a violência. Na segunda-feira a Maria Aparecida foi ameaçada.
Rets - Só houve ameaça?
Maria de Fátima Dourado - Como já disse, ela mora na periferia. Ela estava voltando de ônibus para casa na segunda-feira à tarde e quando desceu, um carro parou ao seu lado e uma pessoa de dentro dele perguntou quem era ela. A Maria Aparecida se identificou e em seguida a puxaram para dentro do carro. Ela começou a se debater e enquanto isso falaram para ela parar de denunciar o que os outros faziam. Puseram um pano em seu rosto e ela desmaiou. Quando voltou a si estava dentro do bagageiro do carro, onde ficou por horas, até a largarem num terreno baldio em Paraíso do Tocantins, a 63 quilômetros de Palmas. Isso foi às 23h30 e como o local é perigoso, ninguém queria se aproximar para ajudá-la. Finalmente uma pessoa chamou a polícia, que a identificou e a levaram para o hospital da cidade. Os seqüestradores não mexeram em nada dela, a pasta de trabalho foi devolvida com tudo dentro. A polícia ligou para uma conselheira tutelar que a conhecia, pois ela também era conselheira, e aí fui avisada. Então fui buscá-la.
Rets - Houve agressões?
Maria de Fátima Dourado - Física não. Só a verbal e o fato de ficar amarrada no bagageiro.
Rets - Vocês desconfiam de quem foi?
Maria de Fátima Dourado - São pessoas incomodadas com nosso trabalho. Segundo os presos, 30 policiais estavam no presídio para espancá-los depois de controlada a rebelião. A Maria Aparecida não reconheceu nenhum dos que a levaram. No Conselho Tutelar, ela fazia muitas denúncias. Mas eram contra pais violentos, pessoas pobres que não teriam o aparato necessário para fazer uma operação daquelas.
Rets - Então a suspeita é de que tenham sido pessoas ligadas aos policiais?
Maria de Fátima Dourado - Parece que sim, mas não há nada confirmado.
Rets - Essa foi a primeira ameaça que vocês receberam?
Maria de Fátima Dourado - Nesse estilo, sim. Trabalho aqui há cinco anos e até hoje, nada. Geralmente as pessoas que nos procuram é que são ameaçadas. Algumas até já chegaram a sair da cidade. Não vêm atrás da gente pois temem repercussão. A Aparecida é a parte mais fraca por não ter o nome relacionado ao do Centro, pois é voluntária. Além disso, mora na periferia e anda de ônibus. Ou seja, fica mais exposta.
Rets - Que providências já foram tomadas?
Maria de Fátima Dourado - Encaminhamos a denúncia ao Movimento Nacional de Direitos Humanos, e daí à OEA (Organização dos Estados Americanos), que solicitou proteção do Governo Federal a ela e a um promotor que também foi ameaçado. Ele já anda com escolta, mas ela ainda não. Está abalada, não queremos forçar as coisas. Além disso, não confiamos em polícia para ter escolta.
Rets - Já há investigações?
Maria de Fátima Dourado - A polícia militar já abriu sindicância para apurar as denúncias e foi aberto inquérito pela Secretaria Municipal de Segurança Pública.
Rets - É comum esse tipo de ameaça em Tocantins?
Maria de Fátima - Em Palmas, da forma como foi agora, não. Mas na região do Bico do Papagaio, no norte do estado, é mais comum. Os trabalhadores sindicalizados sofrem muito com fazendeiros e policiais. Aqui na região central, não. Ficamos surpresos. O normal é a vítima ser ameaçada.
Rets - Além de acompanhar a aplicação dos direitos humanos dentro dos presídios, com que mais trabalha o CDHP?
Maria de Fátima Dourado - Fazemos acompanhamento de políticas públicas de moradia (no programa municipal Habitat Brasil, no bairro de Santa Bárbara, zona sul de Palmas), criança e adolescente, mulheres, formação comunitária e de combate à violência policial. Esta é mais ativa, fazemos denúncias, procuramos autoridades etc. Essa atividade de monitoramento da violência policial ocupa mais o nosso tempo, pois trabalhamos sozinhos. Nos outros, são atividades conjuntas.
Rets - Como surgiu o Centro?
Maria de Fátima Dourado - Ele funciona desde 1995. Até então, havia o Centro de Defesa de Cristalândia, presidido pelo bispo Heriberto Hermes. Ele foi criado em razão dos problemas causados pela migração descontrolada para a capital. Logo surgiram problemas de moradia, invasão de terras e violência. Os grupos comunitários que foram surgindo viram a necessidade de se organizar ainda mais e daí surgiu o Centro de Defesa de Direitos Humanos de Palmas. Trabalhamos com essas questões e também em outras áreas, mas essas são as principais.
Rets - Quais são os principais problemas de Palmas em relação ao respeito aos direitos humanos?
Maria de Fátima Dourado -Temos muitos problemas, é difícil apontar apenas alguns. Temos falta de moradia, muitas crianças vivendo nas ruas. Enfim, problemas que qualquer capital brasileira possui.
Rets - O fato de Palmas ter sido uma cidade planejada recentemente não deveria evitar esse tipo de situação?
Maria de Fátima - Na verdade, a cidade sofre com a falta de planejamento. Só se pensou no Plano Diretor, o centro da cidade. Os pobres acabam sendo jogados para bairros afastados, a 20 quilômetros do Plano Diretor.
Rets - Um planejamento mais aprofundado de hoje em diante poderia resolver isso?
Maria de Fátima Dourado - É tudo vontade política. Mas não temos visto esse tipo de atitude por parte do governo.
Rets - Os casos de violência, especificamente, se devem a quê?
Maria de Fátima Dourado - Diversos fatores. Falta de moradia, desemprego, condições de vida em geral. Tudo contribui para que a população pobre acabe se rebelando. Do início da semana até agora (uma quinta-feira), já tivemos cinco assaltos, alguns seguidos de morte. Pode parecer pouco, mas a cidade tem apenas 170 mil habitantes.
Rets - A população tem crescido muito desde a fundação da cidade?
Maria de Fátima Dourado - Há muito incentivo para as pessoas virem para cá. O governo do estado e a prefeitura utilizam muito a mídia para vender a cidade como um “eldorado”, com intenção de atrair ricos e investidores. Mas quem acaba vindo são pessoas pobres do Maranhão, Ceará e outros estados do norte e nordeste. Sem estrutura, eles começam a ocupar terrenos ilegais, inclusive áreas de proteção ambiental e daí surgem conflitos. A questão ambiental, por sinal, é complicada. Há grandes projetos como barragens sendo implementados e seu impacto é grande tanto para o meio ambiente quanto para populações ribeirinhas.
Rets - E como são resolvidos esses conflitos?
Maria de Fátima Dourado - Com a ação da polícia. Casas são derrubadas e quem se rebelar apanha. Problemas sociais aqui são resolvidos com polícia e não com ações políticas.
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