Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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A violência está em um dos mais altos postos no ranking de preocupações dos brasileiros e, possivelmente, do mundo todo. Uma reflexão que não foge a quem se debruça sobre o assunto é que seu aumento está diretamente ligado ao uso de armas de fogo, especialmente aquelas de pequeno porte – fáceis de transportar e de guardar, de uso simples e custo acessível. A definição sobre armas leves ou de pequeno porte as classifica como aquelas que podem ser usadas e transportadas por uma ou duas pessoas. Nessa categoria se encaixariam, por exemplo, pistolas, revólveres, escopetas, rifles, metralhadoras pequenas, lança-granadas e morteiros, entre outras. No entanto, na grande maioria das vezes, ao se referir a armas pequenas ou leves, fala-se de revólveres, como os famosos calibres 38 ou 45 – aqueles que muitas pessoas têm em casa com a intenção de se protegerem.
No entanto, são justamente os armamentos leves os responsáveis pela maior parte das mortes por armas de fogo no mundo – principalmente entre a população civil. No Brasil, o número de mortos com armas leves e pequenas é de 45 mil pessoas por ano, de acordo com dados das Nações Unidas. Isso fez com que a ONU desse ao Brasil o título de país que mais mata com armas de fogo no globo. No planeta, dados da organização Desarme dão conta de que aproximadamente 500 mil pessoas morrem todos os anos em função de ferimentos causados por armas pequenas usadas para solucionar conflitos, em crimes e outros eventos violentos.
Além disso, estima-se que, hoje em dia, existam cerca de oito milhões de armas, entre legais e ilegais, no Brasil. Os números, porém, não se apóiam em dados completamente seguros. A quantidade exata de armas no país, por exemplo, não há como saber – afinal, sobre as ilegais (que chegam às pessoas através do tráfico de armas ou roubadas) não se tem controle, em função de sua própria origem indefinida.
Mais do que uma questão de números crescentemente alarmantes, a vinculação do aumento das armas de fogo ao aumento da violência é, no entanto, uma questão de lógica: quanto mais armas, mais chance de elas serem usadas; quanto mais forem usadas, mais estrago podem causar; ou seja, mais podem matar. Além disso, diversos estudos apontam para o fato de que a maioria das vítimas dessas armas é civil e boa parte são mulheres e crianças. Das 500 mil vidas perdidas em conseqüência do uso de armas de fogo no mundo, 200 mil morrem em homicídios, crimes, suicídios e acidentes, ou seja, fora de guerras ou conflitos armados. A título de ilustração, uma pesquisa feita pelo sociólogo Guaracy Mingardi na zona sul de São Paulo (área mais violenta da cidade) mostrou que 48,3% dos homicídios praticados naquela região foram causados por “motivos fúteis” – por exemplo, brigas em bar, no trânsito, entre vizinhos etc. Essa realidade se repete em outras capitais do país. Ou seja, com a facilidade de acesso às armas, as pessoas estão tendendo a resolver cada vez mais seus conflitos com fogo. “Temos informações dando conta de que ao longo das últimas décadas, na medida em que foram diminuindo os casos de agressão física, foi aumentando o caso de ferimentos por armas de fogo. Isso mostra que as pessoas estão recorrendo aos armamentos ao invés da velha pancada”, diz Mariana Montoro Jens, gerente de mobilização do Instituto Sou da Paz – organização que nasceu em 1999, a partir da Campanha Sou da Paz, lançada em 1997 pelos estudantes de direito da USP, para pedir justamente o desarmamento da população.
É nesses argumentos de que “a ocasião faz o assassino” que se baseia o esforço de organizações e movimentos que lutam pelo desarmamento. Com a proximidade do mês de julho, as atividades se intensificaram. Dois são os motivos para isso: primeiro, a ocorrência do Dia Mundial pelo Desarmamento, comemorado no dia 9 de julho, e a realização da Reunião Bienal das Nações Unidas sobre Armas Pequenas, onde serão discutidas estratégias e será feito um balanço sobre a implementação do Plano de Ação das Nações Unidas para Prevenir, Combater e Erradicar o Comércio Ilícito de Armas Pequenas e Leves em todos os seus Aspectos, de 2001. Como forma de marcar posicionamento frente aos participantes da reunião, a Rede Internacional de Ação contra Armas Pequenas (Iansa, sigla em inglês) convocou seus participantes – mais de 500 grupos em aproximadamente 100 países – a realizarem ações pelo desarmamento da população civil, naquilo que a Iansa chamou de Semana Global de Ação contra Armas Pequenas, de 1º a 8 de junho. No mundo todo, aconteceram 123 eventos registrados, em 42 países.
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No Brasil, a mais expressiva manifestação foi a realizada pelo Instituto Sou da Paz (membro da Iansa) e pela ONG Convivi, de Brasília, em frente ao Congresso Nacional, no dia 4 de junho. Foram expostos 700 pares de sapatos de pessoas mortas por armas de fogo, simbolizando uma marcha silenciosa. Ao propor ações como essas e com antecedência aos dois acontecimentos de julho, a intenção da Iansa é jogar luz sobre o assunto, mobilizar a população, formar massa crítica, além de fazer com que as metas de combate às armas de pequeno porte sejam reafirmadas e que novas sejam criadas pelos países.
Medidas para atingir o alvo
Porém não só perto de comemorações ou encontros as ONGs desenvolvem ações pelo desarmamento. A busca e proposição de estratégias e medidas eficientes de combate ao tráfico de armas – principal responsável pela proliferação do arsenal ilegal – e de recolhimento de armas constituem boa parte do trabalho. Uma novidade que pode fortalecer o trabalho em prol do desarmamento é o anúncio, feito em início de junho, pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, de medidas para facilitar e desburocratizar a devolução de armas por parte da população. Ao apresentar a novidade, o Secretário Nacional de Segurança, Luiz Eduardo Soares, afirmou que “vivemos um grande problema com as armas. Este é o nosso maior desafio, por causa do tráfico e roubos, que levam para a ilegalidade até armas legais. As pessoas pensam que se defendem ficando com uma arma em casa, mas na verdade estão mais vulneráveis ao crime”. Esse, aliás, é um dos pontos levantados por Mariana, do Instituto Sou da Paz. “É preciso desfazer esse mito, no qual as pessoas acreditam, de que estão mais protegidas portando uma arma. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, um cidadão que possui arma de fogo tem 57% mais chance de morrer em um assalto do que os cidadãos desarmados”, diz a gerente.
Rubem Cesar Fernandes, coordenador geral do Viva Rio (organização que também faz parte da Iansa), lembra que o controle da armas no país é extremamente importante para que estas não cheguem às mãos de quem não deve, e ressalta a necessidade de analisar com detalhes aquelas recolhidas pelas polícias. “A polícia do Rio recolhe cerca de 10 mil armas por ano, e estas não são devidamente registradas. É preciso modernizar estoques e os sistemas de catalogação desses objetos, pois assim se consegue rastrear corretamente e saber de onde veio cada peça. Ou seja, assim se conseguiria saber mais sobre o tráfico de armas – que, ao contrário do tráfico de drogas (que é feito de baixo para cima, com plantações no meio do mato etc.), é feito de cima para baixo, com as armas sendo produzidas em grandes companhias e só depois se tornando ilegais”, diz o antropólogo.
O coordenador do Viva Rio aproveita para demonstrar a importância de arquivos bem trabalhados, lembrando que a organização concluiu em 2002 a informatização dos arquivos de armas apreendidas e vendidas no Rio de Janeiro – em uma ação em parceria com o Governo do Estado. O projeto gerou um arquivo com dados de 700 mil armas (500 mil vendidas e 200 mil apreendidas), através do qual se descobriu, por exemplo, que as principais armas apreendidas não eram submetralhadoras ou fuzis, mas, na verdade, pistolas e revólveres – que são nove em cada dez peças.
Ter o perfil da distribuição das armas é fundamental para o combate ao tráfico de armas – que ganhou um reforço de peso no âmbito da Polícia Federal (PF), com o anúncio, em final de maio, da criação de uma unidade especializada dentro da corporação. Rubem Cesar elogia a novidade e destaca “que já veio tarde”. Segundo Mariana, o Sou da Paz vê com muitos bons olhos ações como essa da PF, porém a gerente de Mobilização não deixa de lembrar que é preciso dar especial atenção aos países fronteiriços com o Brasil. “Muitas vezes a arma sai do Brasil legal e entra de novo no país ilegalmente”, recorda ela. O coordenador geral do Viva Rio faz coro: “O Brasil é o maior produtor e exportador de armas da América Latina, mas não tem um controle interno de armas muito eficiente, assim como nossos países vizinhos. Por isso, deveria se reduzir a venda para estes lugares, pois as armas acabam voltando para o Brasil de forma ilegal. Se quer exportar, que se exporte para longe”, defende.
Já Vilson Venturi, coordenador geral do Movimento Pela Paz e Não Violência do Espírito Santo, acredita que nem exportar é indicado: “Isso é meio doente: se eu não quero para mim, vou querer para o meu vizinho?” questiona ele. Para Vilson, o combate ao tráfico também tem que ser feito nas fronteiras, “com a presença inteligente da Polícia Federal, blitzes intensificadas e com ações articuladas entre os países do Mercosul”. O capixaba defende também que o correto seria acabar definitivamente com a produção e, conseqüentemente, o porte de armas de civis no país. “Se ficarmos somente controlando o tráfico e impondo regras mais rígidas para o comércio, tenho a impressão de que estaremos constantemente podando árvores”, diz Vilson. Para ele o ideal seria que as fábricas de armas no Brasil fossem progressivamente deixando de produzir armamentos e voltando-se para outro produto. Teriam um prazo de cinco anos para concluir essa migração, ao longo do qual receberiam incentivos do governo para mudarem de ramo. Radical no princípio, mas racional na implementação.
O que Vilson defende é o sonho de todos os que trabalham pelo desarmamento. No entanto, os movimentos envolvidos com a questão têm consciência de que atingi-lo não é fácil. O Brasil é grande exportador na América Latina e no período de 1989 a 2000 o mercado movimentou US$ 1 bilhão. “O Brasil é o maior exportador de armas da América Latina. Com certeza, o governo não vai querer ou conseguir acabar com fábricas que atuam em um mercado destes. Por isso, temos que demandar coisas mais passíveis de se tornarem concretas, senão ficaremos como um coral de anjos, pedindo medidas sonhadoras”, diz Rubem Cesar. “O lobby é grande, muitos desses grupos da indústria armamentícia financiam campanhas políticas etc. O ideal realmente seria que as fábricas acabassem, mas dificilmente isso vai acontecer”, constata Mariana.
Se o que a indústria armamentícia gera em divisas, impostos e empregos tem um grande peso, as ONGs lembram que o custo que causam – seja financeiro, seja social – pode ser muito maior. “O que o SUS gasta com as milhares de vítimas diárias das armas com certeza supera o que esses fabricantes rendem para o país. Além disso, o custo social é imensurável. É o sofrimento das famílias, que muitas vezes perdem seu arrimo, dos amigos etc.”, aponta Vilson.
Mesmo polêmica, a proposta de extinção da fabricação de armas no país já é objeto de discussão no Senado Federal. Trata-se do projeto de lei nº 202 de 2003, de autoria do Senador Renan Calheiros (disponível na área de Downloads Relacionados desta página). Atualmente, a matéria está – junto com outros PLs menos ousados, que, por exemplo, propõem regras mais rígidas para registro no Sinarm (Sistema Nacional de Armas) – na Comissão de Constituição e Justiça da casa. Mais especificamente, os PLs estão na Subcomissão de Segurança Pública daquela comissão, onde o senador Cesar Borges, relator para o tema de armas e tráfico de armas na subcomissão (e relator especificamente de um dos PLs que estão na CCJ) está analisando a questão. Seu assessor Davi Oliveira explica que o senador, na condição de relator para o tema de armas, encarrega-se de analisar todas as matérias relativas ao assunto tramitando na casa e propor estratégias, indicar o que deve ser priorizado e aprovado.
“Assim, o senador, ao relatar o PL do qual está encarregado, vai tentar fundir o que pesquisou sobre o tema, apresentando um substitutivo que englobe as diferentes propostas”, explica Oliveira, que conta também que têm sido realizadas audiências abertas de discussão sobre o tema, pela subcomissão, com o objetivo de averiguar o que ONGs e outros membros do Senado pensam sobre o assunto. A última audiência foi na terça-feira, dia 10 de junho. O parecer do senador Cesar Borges será apresentado no próximo dia 18.
Os integrantes dos movimentos pelo desarmamento destacam, no entanto, que – mais do que ações governamentais – é preciso mobilização das pessoas para a importância do tema. Rubem Cesar defende que mais luz seja jogada sobre o assunto, especialmente para fortalecer os acordos e metas já estabelecidos para se caminhar para o desarmamento. “Nessa reunião da ONU que vai acontecer em julho, por exemplo, é importante não deixar se perder o que já conseguimos. Nos anos recentes, houve um recrudescimento de conflitos, uma opção pela guerra, especialmente depois dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001. A reunião da ONU, agora em julho, deve ser usada para confirmar medidas propostas e elencadas no Plano de Ação das Nações Unidas para o tema, aprovado dois anos atrás”, defende o antropólogo. Já Vilson, do Movimento Pela Paz e Não Violência do Espírito Santo, também acredita que é preciso trazer o assunto à tona, e reflete: “Nenhuma mudança cultural se faz da noite para o dia. E o que nós estamos querendo é uma mudança cultural na sociedade civil organizada – que as pessoas comecem a se articular, a cobrar ações do governo, a formar opinião. Pois o que queremos não são mais idéias de sonhadores – é presente”.
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