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A = O

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Artigos de opinião

Moema L. Viezzer*

No alfabeto é assim: “A = O”. Duas letras diferentes, iguais em importância. Na vida dos seres humanos, naturalmente deveria também ser assim: iguais em direitos humanos e respeitados em suas diferenças de homens e mulheres.

Entretanto, o rio da história da humanidade não seguiu esse ”curso natural” das coisas. Ao longo de milênios, a divisão sexual do trabalho e os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres fizeram o gênero masculino sobrepor-se ao gênero feminino em relações sociais baseadas no binômio dominação/subordinação cristalizaram-se em todas as esferas da vida humana.

O mundo mudou

Nos últimos anos, a presença feminina em funções cada vez mais diferenciadas no mercado de trabalho, na política, na administração, entre outros, trouxe a necessidade de traduzir para o vocabulário o que vem sendo vivido.

O movimento de mulheres foi pioneiro ao identificar as concepções estereotipadas das características e papéis atribuídos a mulheres e homens e aceitar a diversificação hoje existente. Reitor de universidade pode ser reitora, assim como vereador, deputado, senador, pode ser vereadora, deputada, senadora. Delegados, consultores, peritos, podem ser mulheres ou homens. Menina que nasce pode vestir branco, verde, amarelo ou até azul e é tão desejada quanto menino por ser, como ele, um novo ser humano. Menina pode brincar com carrinho, menino pode brincar de boneca... sem problema. Em casa, homens se revezam com mulheres em todas as tarefas de reprodução da vida, no cuidado das crianças e dos trabalhos do lar... com muito prazer! A vinculação da mulher ao antigo pátrio poder masculino, primeiro do pai, depois do marido, aliadas aos vários tipos de negação e invisibilidade da mulher já são vistos como estereótipos de um traço social antigo, mesmo se a prática cotidiana ainda não é generalizada.

Como o eixo cultural que fazia do homem o núcleo das relações familiares, comerciais, profissionais e intelectuais foi deslocado, o desempenho da mulher no novo status que adquiriu trouxe outras exigências, que incluem mudanças profundas em relação ao que aprendemos tradicionalmente na educação discriminatória recebida na família e depois na escola, tanto no conteúdo como na linguagem dos livros de história, geografia, ciências, gramática, redação, matemática etc., chegando até o conteúdo e a linguagem dos cursos de direitos, filosofia, engenharia, arquitetura e tantos outros, de nível universitário. Como conseqüência, emergiu a necessidade de revisar a linguagem em suas diversas formulações, exemplos e imagens que contribuem para perpetuar os estereótipos sexuais. A revisão da linguagem tornou-se, assim, um novo tema de aprendizagem permanente para crianças, jovens e pessoas adultas, independentemente da formação acadêmica à qual tiveram acesso.

A linguagem sexista chegou a ser objeto de estudo tratado nos mais diferentes níveis de governo, chegando ao âmbito das Nações Unidas. Na 24ª sessão da Assembléia Geral da UNESCO, foi examinada a necessidade e a conveniência de se eliminar dos registros escritos e dos discursos orais “todas as formas discriminatórias de linguagem” em relação à mulher. Juntamente com outras questões relativas ao novo status que a mulher adquiriu, foram trabalhadas uma série de normas e resoluções, editados manuais de estilo e de redação e implantadas regras diversas em relação à questão. A UNESCO publicou, inclusive, uma série de Diretrizes para uma Linguagem Não-sexista.

Um tema planetário de educação permanente

Mas a linguagem sexista é fruto de uma prática social sexista, pautada pela educação sexista recebida na família, na escola, nas igrejas, no ambiente de trabalho e de lazer ou através dos meios de comunicação. A forma como um povo se expressa através de sua linguagem no sentido amplo da palavra, revela a qual é sua visão do mundo, quais são os valores e sentimentos que norteiam a dinâmica de sua organização social e psicológica.

Neste sentido, mudar a linguagem sexista significa aceitar o desafio de romper com sistemas de educação e práticas sexistas para criar nova consciência e novas atitudes e formas de relações entre homens e mulheres. Este tema, trazido pelo maior movimento social mundial do século XX - o movimento de mulheres -, entrou na pauta de várias conferências mundiais do último quarto do século XX, quando as mulheres emergiram no cenário internacional.

O evento mais significativo foi, sem dúvida alguma, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher realizada em 1995 em Beijing, na China, que contou com a presença de 184 países e mais de 40 mil mulheres, culminando um processo de intensa mobilização dos movimentos de mulheres em nível mundial. No Brasil, mais de 800 grupos participaram do processo preparatório.

O resultado maior desta conferência foi a Plataforma Mundial de Ação orientada para proteger os direitos humanos das mulheres respeitando suas características individuais de raça, etnia, idade, condição física, social, estado civil e cultura. O governo brasileiro também assinou sem reservas a Plataforma com o elenco de propostas que os governos de todo o mundo devem implementar nas seguintes áreas: pobreza, educação, saúde, violência, direitos humanos, meio ambiente, comunicação, exercício do poder e participação política.

Por incrível que possa parecer, alguns representantes de governos fundamentalistas presentes à Conferência tiveram dificuldade de assinar os parágrafo onde se afirma que “os direitos das mulheres são direitos humanos”. É um dado que revela o tamanho e o alcance desta questão ainda pendente em nível planetário e deixa clara a necessidade de esforços especiais para mudar as mentalidades de centenas de milhões de pessoas que ainda são formadas de acordo com valores, crenças, leis e costumes que discriminaram o sexo feminino durante milênios.

O capítulo da Plataforma sobre Educação aponta algumas destas questões a serem resolvidas:


  • Assegurar a igualdade de acesso à educação para as mulheres de todas as idades;


  • Erradicar o analfabetismo, assegurando o acesso universal das meninas ao ensino primário e secundário antes do ano 2015;


  • Aumentar o acesso das mulheres à formação profissional e criar programas educativos para mulheres desempregadas;


  • Velar para que as instituições educacionais respeitem os direitos das mulheres e meninas à liberdade de consciência e religião;


  • Promover uma educação não discriminatória, eliminando toda e qualquer disposição legal que estabeleça diferenças por qualquer forma de discriminação;


  • Elaborar currículos e livros didáticos livres de estereótipos para todos os níveis de ensino, inclusive para a formação de pessoal docente.

    Por sua vez a UNESCO, na V Conferência de Educação de Jovens e Adultos realizada em Hamburgo no ano de 2000, foi muito insistente na necessidade de rever totalmente nossos padrões mentais, desenvolvendo novas atitudes e adquirindo novas habilidades para um convívio harmonioso entre mulheres e homens convivendo em sociedade. A revisão da linguagem é ali incluída em sua expressão mais ampla, de representação social que, ao ser diferente nas pessoas jovens e adultas, repercutirá, naturalmente na educação das crianças.

    Em Campanha por uma linguagem e uma educação não sexista

    Desde 1991, a Rede Latino-americana de Educação Popular entre Mulheres – REPEM - realiza, cada ano, uma Campanha Educação Não-Sexista com data marcada: 21 de junho. Nesse dia, nos vários paises do continente, centenas de milhares de textos, poemas, letras de canções, desenhos, peças de teatro, concursos, programas de rádio e TV, publicações, seminários, etc. expressam na maior diversidade de aproximações, que “A=0”. Além das escolas e universidades, a Campanha busca chegar às empresas, órgãos públicos, organizações da sociedade civil, onde a redação de comunicados e documentos, pronunciamentos e palestras, publicações e materiais educativos, pode expressar nova postura frente à mesma questão: “A=O”.

    Definitivamente, o reconhecimento da igualdade de direitos humanos de homens e mulheres na sua diversidade de condição humana passa também por uma linguagem não sexista. Naturalmente, ela só acontece quando igualmente se modifica a prática das pessoas que decidem incluir em suas vidas a “aprendizagem permanente da partilha do poder, do saber, do prazer e do bem querer entre mulheres e homens convivendo em sociedades que se fundamentam na igualdade, equidade e reciprocidade. Porque A=0".

    Educação não-sexista e não discriminatória é educação inclusiva

    A partir de 1998, a REPEM mudou o título da campanha. De educação não-sexista passou a educação não discriminatória. Esta mudança veio como evolução normal dos acontecimentos e do envolvimento da REPEM com as grandes campanhas anti-racistas É normal que assim seja. Porque a mulher, discriminada por ser mulher, vive a discriminação de gênero de formas diferenciadas a partir de sua condição de classe, de raça e etnia ou de idade. Desta forma, a Campanha de educação não-sexista e não discriminatória é, em última instância uma campanha de educação inclusiva de todos os seres humanos - mulheres e homens - nos vários ciclos da vida.

    *Moema L. Viezzer é socióloga e educadora, fundadora da Rede Mulher de Educação co-fundadora da REPEM - Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e do Caribe.






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