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Pesca: renda, trabalho, preservação e cultura

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets








Com mais de oito mil quilômetros de costa e quase 12% da água doce do planeta, o Brasil é claramente uma terra propícia à pesca. Desde os romances de Jorge Amado até os festivais de frutos do mar das cidades litorâneas, passando pelas atividades das comunidades ribeirinhas da Amazônia, o país tem na pesca – e na cultura e no universo que a circundam – uma das suas maiores referências. A atividade, especialmente aquela desenvolvida em pequena escala, encerra, no entanto, um cardume de aspectos importantes, por vezes esquecidos ou subestimados, entre eles a produção de alimentos; a geração de emprego e renda; em alguns casos, conservação ambiental; manutenção da cultura popular, entre outros. Também é pouco considerada a totalidade de suas nuances.

A pesca é dividida entre pesca amadora e profissional. A primeira tem o caráter mais esportivo, de hobby. A segunda é aquela desenvolvida por pessoas que tornam o ato de pescar sua atividade primeira e principal, uma forma de emprego. Dentro da pesca profissional, mais linhas separam os pescadores e pescadoras e a principal delas tem a ver com escala da pescaria, com o fato de ser em benefício próprio ou não e com os instrumentos que utiliza. De uma maneira geral, aquele tipo de pesca realizado pelo próprio pescador (ou seja, aquela atividade em que ele é patrão, empregado e sócio), possivelmente com a ajuda da família, é chamada de pesca artesanal.

Outras características desse tipo de pesca são sua escala pequena – afinal, é um pescador colhendo peixe sozinho, quiçá com a ajuda de uma ou duas pessoas – e os instrumentos utilizados, com o emprego de tarrafas, anzóis, redes pequenas, barcos de pequeno porte, que têm uma limitação de distância da costa, entre outros.

O outro tipo de pesca é a industrial, caracterizada por normalmente ser desenvolvida por empresas, contar com embarcações grandes ou frotas de pequenos barcos, utilizar instrumentos para pegar peixes em maior escala e, em alguns casos, uso de redes de arrasto quilométricas, com malha mais fina do que a permitida, causando uma verdadeira destruição ambiental.

Mesmo tendo essas características gerais, que ajudam a distinguir estes tipos de pesca, tanto a definição conceitual quanto a classificação dos pescadores dentro de uma ou outra categoria ainda causam dúvidas. “Existe um problema conceitual para definir o que é pesca artesanal e o que não é. Qual o limite? Desde a pessoa que pesca em um canal urbano até aquela que pesca com uma traineira, no mar, os dois casos podem ser considerados pesca artesanal. É subjetivo. Normalmente se define mais por não envolver empresa e o pescador ser autônomo”, reconhece Marcelo Szpilman, biólogo marinho e diretor-gerente do Instituto Ecológico Aqualung, além de autor de dois livros sobre identificação de peixes. O diretor do Núcleo de Informação e Transferência do Conhecimento do Instituto de Pesca de São Paulo, Carlos Arfelli, concorda: “Seria preciso estabelecer parâmetros mais precisos”, diz o pesquisador.

Mas pode-se dizer que esse tipo de pesca é aquela vista como mais tradicional, aquela cujos adeptos têm o perfil dos retratados nos livros de Jorge Amado – com a figura do pescador experiente (mítico, até), que conhece o mar a fundo, seus humores, suas peculiaridades etc. Homenageado nas linhas do escritor baiano, na realidade esse pescador – e sua família – têm que lidar não só com as adversidades das marés, mas com problemas crescentes e demandas subatendidas.

Sobrepesca e pesca predatória

O maior dos problemas por eles enfrentados é a pouca quantidade de peixe. Por que isto acontece? Pesca predatória e sobrepesca são as principais respostas. A primeira tem a ver com qualidade do que é pescado. A segunda, com quantidade. Os grandes barcos da pesca industrial são os principais responsáveis pela pesca predatória, com redes de arrasto de quilômetros (algumas fora dos padrões, tendo uma malha mais fina do que o permitido, ou seja, com abertura menor do que a autorizada) que saem arrastando tudo o que encontram pelo caminho. Esse tipo de pesca não seleciona o que pega, podendo capturar espécies que não se desejam, ameaçadas ou não, e matando muitos dos animais neste processo. “Esse é um método ativo de pesca. A pessoa vai ao encontro do pescado. Os bichos ficam retidos, comprimidos no fundo da rede, sem qualquer chance de escape”, explica Arfelli.

“Eles acabam com a fauna, desde o fitoplâncton até o tubarão. Não tem como competir”, constata Tsuneo Okida, pescador aposentado que, aos 70 anos, comanda a Federação de Pescadores Artesanais de São Paulo. Segundo ele, muitos deles são barcos estrangeiros (espanhóis, japoneses, chineses, italianos) que vêm para o Atlântico Sul para capturar espécies que já estejam praticamente extintas em seus países ou migratórias. “São mais de 100 barcos estrangeiros arrendados no Brasil”, diz ele. Além de os pescadores artesanais não terem como competir com estas embarcações – que recolhem muitos peixes ao mesmo tempo – uma outra conseqüência é ainda mais importante: com a execução sumária que a pesca de arrasto promove, a fauna marinha é praticamente destruída, prejudicada de forma extrema, com riscos de danos permanentes. Espécies em extinção podem perder ainda mais animais; outras podem ter sua reprodução prejudicada. De qualquer maneira, o equilíbrio ecológico é comprometido, ou seja, depredado. Além disso, por pescarem em grande quantidade e às vezes em uma quantidade maior do que uma determinada população marinha tem capacidade de repor, fazem a sobrepesca.

De uma maneira geral, os pescadores artesanais não costumam ser predadores do meio ambiente – por serem seletivos e saberem o momento de pescar cada espécie. No entanto eles também podem ser predadores da fauna marinha quando não respeitam as épocas de defeso (períodos em que a pesca de uma determinada espécie é proibida para a desova) ou continuam pescando em momentos em que a opção correta seria esperar. “Na minha opinião, o maior problema hoje em dia é a sobrepesca, mas os pescadores fazem isso porque não têm alternativa, porque têm que continuar pescando para sobreviver”, explica Szpilman. Por esse mesmo motivo, podem vir a pescar mais do que a natureza comporta, contribuindo também para a sobrepesca.

“Está tudo no limite máximo de captura. Está faltando peixe. Mas os pescadores continuam porque precisam disso para sobreviver”, diz o presidente da Federação de Pescadores Artesanais de SP, que reúne 21 colônias de pescadores. “As pessoas têm a idéia de que o mar tem grande abundância, que é uma fonte inesgotável – o que não é verdade. É preciso respeitar seus períodos de reposição das populações, recuperação etc.”, diz Arfelli. Já Francisco Moreira, diretor do cearense Instituto Terramar, acha que, para que este tipo de conflito não aconteça, “a principal bandeira deve ser a definição de áreas específicas para a pesca artesanal e a alteração da gestão do espaço litorâneo”, que, para Moreira, deve ser melhor distribuído.

Estímulos

O fato é que atualmente a oferta de pescado está prejudicada e o principal motivo disso é a necessidade que os pescadores – artesanais ou não – têm de continuar pescando, mesmo quando isso não é recomendado. Nesse sentido, o anúncio de um pacote de medidas governamentais no último dia 13 pode contribuir, na medida em que prevê uma verba de R$ 55 milhões para financiamentos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) – Pesca. Outra ação concretizada recentemente foi a criação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, estabelecendo, então, um órgão com status de ministério para cuidar especificamente do assunto. A intenção do pacote de medidas é ampliar em 50% a produção da pesca e da aqüicultura nacionais nos próximos três anos.









Com o Pronaf–Pesca, os principais beneficiários serão os pequenos pescadores artesanais. Com as verbas que podem ser obtidas junto ao programa, o pequeno pescador terá crédito para desenvolver e melhorar sua atividade, podendo aplicar em compra de ferramentas, melhorias nos barcos, insumos, tratamento do pescado para vendê-lo com valor agregado, aquisição de óleo diesel para as embarcações etc. O óleo, aliás, terá seus preços “equalizados” para a frota pesqueira nacional. “Com essa medida, vamos reduzir em 20%, em média, os preços de um item que representa quase a metade dos custos de produção. Abre-se espaço, assim, para uma oferta mais barata no varejo, capaz de ampliar o consumo de produtos da pesca nacional. Se depender deste governo, o Brasil vai ocupar uma posição de destaque no século 21 como grande produtor de proteína de baixo custo”, afirmou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante a cerimônia de anúncio das medidas.

Há quem critique algumas das diretrizes anunciadas, por temer que se intensifique ainda mais a atividade em um setor que já demonstra saturação. No entanto, a repercussão, de uma maneira geral, foi positiva. Okida, da Federação dos Pescadores Artesanais de SP, comemora esta novidade, especialmente o Pronaf–Pesca, pois “o setor não vive sem crédito”. Segundo ele, “se cair realmente nas mãos dos pequenos pescadores, será ótimo para estimular a melhoria das condições de trabalho”. Se de fato os pescadores incorrem na sobrepesca por não terem outra opção na busca da sobrevivência, como apontou Szpilman, essa poderá ser uma alternativa. A ajuda não seria só para o aquecimento da atividade, da geração de renda e de trabalho no setor, mas também para a conservação da diversidade e saúde da fauna marinha – podendo agregar valor aos seus produtos e tendo capital de giro, é provável que não se vejam compelidos a extrapolar na atividade pesqueira. “A pesca é meio de sobrevivência – não é nem de vivência, é de sobrevivência mesmo – para muitas pessoas. Tanto que, com esses altos índices de desemprego, você vê cada vez mais gente querendo tirar licença de pescador profissional. Ou seja, as pessoas dependem da atividade, contam com ela para tirarem seu próprio alimento. Não digo nem vender, porque muitos não conseguem nem isso. E valorizá-la e incentivá-la, tomando o cuidado para não estimular maior esgotamento do pescado, é importante para a vida de muita gente”, reflete Okida, com conhecimento de mais de 60 anos dedicados à profissão.

Pescador como agente ambiental

Além disso, a atividade, se bem cuidada, pode não só ajudar na preservação ambiental, mas ir além: seus principais alicerces, os pescadores, podem ser transformados em agentes de educação e conservação ambiental, aliando suas preocupações e procedimentos habituais a ensinamentos técnicos sobre o assunto. “Se você olhar de perto, o pescador artesanal também é um ambientalista”, orgulha-se Okida. “Sou do pensamento de que não precisa ensinar educação ambiental para os pescadores: eles já sabem disso, têm a consciência, mesmo sem o conhecimento técnico”, opina Szpilman. “Normalmente essas pessoas têm um conhecimento empírico muito grande”, completa Arfelli. Além da quase instintiva tendência a preservar e não adotar práticas danosas ao meio ambiente, os pescadores são eficientes, pois estão espalhados por todos os lugares das costas e das beiras dos rios, o que torna mais pulverizada a contribuição destes homens e mulheres. É o que acontece, por exemplo, no projeto implementado recentemente pelo Instituto de Pesca de SP junto às colônias da Baixada Santista, em parceria com a Petrobras. Estão sendo treinadas mais de 200 pessoas.

O objetivo é capacitar as comunidades de pescadores para que possam identificar, reportar e cercar vazamentos de óleo. Arfelli conta que há cerca de 20 dias aconteceu um vazamento na região que não se disseminou mais por causa da ação dos pescadores. Ele considera importante também instruir os pesadores sobre algumas de suas práticas que podem ser melhoradas. “Por exemplo, muitos jogam o óleo do barco no mar. Isso poderia acabar. Outros deixam os utensílios que utilizam jogados em áreas costeiras. Isso também pode ser modificado”, exemplifica Arfelli.

Trabalho semelhante a este realiza o Instituto Terramar, no Ceará. Atuando junto a comunidades pesqueiras do estado, a organização contribuiu recentemente para uma conquista importante da comunidade da praia do Batoque, no município de Aquiraz, a 54 quilômetros ao sul de Fortaleza: a área foi transformada na primeira reserva extrativista em todo o nordeste e a primeira em litoral. Moreira, diretor da instituição, lembra que preservar a atividade dos pescadores, conscientizando-os e valorizando suas práticas, é também uma forma de conservar a própria cultura destas comunidades, que, em última instância, é também uma cultura própria da tradição brasileira. “Eles têm uma relação estreita com a natureza. Se a natureza é transformada, isso os prejudica. Eles têm muito forte a cultura da oralidade. Essas e outras questões culturais precisam ser mantidas”.


Maria Eduarda Mattar

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