Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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De um lado, alguém com informações importantes, que pode passá-las anonimamente. Do outro, pessoas treinadas para ouvir e encaminhar aos órgãos certos aquela informação. Esses são os pilares dos serviços de denúncia, especialmente aqueles operados pelas ONGs, seja para o esclarecimento de um crime, para prevenção de outro, para desvelar uma situação, ou para atuar em prol da defesa de direitos de minorias. Ganhando cada vez mais espaço, este tipo de serviço é muitas vezes iniciado pelas organizações da sociedade civil, a partir da identificação de certos problemas ou da necessidade de contribuir para o combate a determinadas mazelas. Exemplo disso é o Disque-Denúncia de São Paulo, lançado e operado pelo Instituto São Paulo contra a Violência, ou o Disque-Racismo do Distrito Federal, iniciado pelo Centro de Referência do Negro, entre muitos outros serviços.
As vantagens deste tipo de iniciativa são variadas. A mais imediata delas é a ajuda direta prestada ao enfrentamento da violência urbana ou de algum tipo de crime específico. O Disque-Denúncia do Rio de Janeiro, operado pelo Movimento Rio de Combate ao Crime, é pioneiro e referência nessa área. Desde 1995, já recebeu cerca de 650 mil denúncias. Só no mês passado, foram 18 mil telefonemas, sendo que 10.018 de pessoas que tentaram colaborar com a polícia na investigação de crimes. Foi o maior número de ligações desde sua criação. Um dos exemplos mais retumbantes da efetividade do serviço foi a ajuda na prisão do traficante Elias Pereira da Silva, mais famoso como Elias Maluco, acusado de mandar torturar e assassinar o jornalista Tim Lopes, há um ano. Durante o período em que a polícia procurava Elias Maluco, o serviço recebeu mais de 2.400 denúncias sobre seu possível paradeiro e de integrantes de sua quadrilha, o que contribuiu diretamente para a localização do traficante. “A polícia prendeu o Elias Maluco sem violência, dentro de casa, a partir de uma denúncia recebida pelo Disque-Denúncia. Outro caso conhecido – em que, lamentavelmente, a informação estava certa, mas o fato não foi impedido – foi a fuga do seqüestrador Sussuquinha. Nós recebemos a denúncia de que ele fugiria em prazo de três dias. E foi isso que aconteceu”, conta o coordenador do serviço, Zeca Borges.
Outra vantagem, ou benefício, que se pode inferir dos canais de denúncia é uma maior participação e envolvimento dos cidadãos, seja em problemas que atingem toda a sociedade, seja para reivindicar e fazer valer seus direitos. Ao denunciarem criminosos, demonstram que querem e, mais que isso, procuram fazer uma sociedade menos violenta. Ao relatarem discriminação contra raça ou opção sexual, deixam de apenas querer e começam a ajudar a construir sociedades mais iguais. E daí por diante. Ou seja, os serviços telefônicos ou on-line de denúncias são uma forma, um canal pelo qual as pessoas podem participar mais ativamente e comprometidamente da busca de soluções para os problemas que as atingem. “Quando as pessoas vêm resultado, quando podem acompanhar e ver no que vão dar as denúncias que fizeram, elas se sentem mais estimuladas e confiantes para denunciar”, diz Ronildo Machado, coordenador do Disque-Denúncia de São Paulo.
Ele diz que o serviço, que surgiu no final de 2000, tem recebido um número crescente de denúncias, o que, segundo Machado, demonstra mais conhecimento desse trabalho, maior conscientização das pessoas, além de mais confiança dos indivíduos em sua efetividade. “O número está cada vez mais conhecido, mesmo sem propaganda. Além disso, a notícia sobre os casos bem resolvidos gera credibilidade, e isso é essencial”. Ele exemplifica a eficiência relatando um caso recente: o serviço recebeu denúncia sobre a possibilidade de seqüestro da tesoureira de um banco, que seria abordada de manhã, ao sair de casa, e levada ao banco que os criminosos pretendiam assaltar. Com a denúncia recebida por telefone, os policiais puderam impedir o seqüestro, que, como eles puderam constatar, de fato iria acontecer.
Os serviços de denúncia sobre episódios de discriminação racial ou sexual dão uma grande mostra de como as pessoas podem usar de forma cidadã esses canais e exercerem seus direitos. Através deles, vítimas desses tipos de crimes podem não só denunciá-los, mas também receber, em alguns casos, acompanhamento jurídico, psicológico ou assistencial. Essa é a proposta, por exemplo, do Disque-Racismo do Distrito Federal, operado pelo Centro de Referência do Negro. A coordenadora, Lucimar Martins, conta que uma recepcionista da instituição denunciou a discriminação feita por um advogado. Foi até o fim e ele foi condenado a pagar seis cestas básicas para instituições de caridade que ela escolheu. “Isso é importante para mostrar às pessoas que podem obter resultados, podem fazer diferença com suas denúncias”, diz Lucimar.
Uma terceira vantagem possível é a contribuição para se traçar um diagnóstico mais apurado sobre determinado quadro de violência ou situação de desrespeito. As informações de tráfico de entorpecentes, por exemplo, são as mais recebidas pelos serviços que recebem denúncias gerais. Em São Paulo, por exemplo, a porcentagem das ligações que relatam este tipo de crime é de 42%. Também em São Paulo, atualmente, vêm crescendo as denúncias sobre maus-tratos ou abuso contra crianças: elas foram as terceiras mais denunciadas em junho. No serviço carioca, o tráfico de drogas também é o crime mais denunciado (em junho, representou 35,28% dos atendimentos) e, assim como no serviço paulista, vem crescendo nos últimos três meses a proporção de informações sobre crimes contra crianças.
Na capital fluminense, o índice de denúncias sobre maus-tratos em família foi o segundo maior – 10,08%, em junho. A coordenadora do Programa de Violência Intrafamiliar do Disque-Denúncia do Rio, Rosana Bacha, lembra que isso não significa necessariamente que tais abusos têm sido cometidos em maior quantidade ou intensidade, mas sim “que as pessoas estão mais sensíveis para identificar esse tipo de crime, os vizinhos estão mais atentos”.
Assim, ao recolherem informações detalhadas sobre crimes e violações, as ONGs que operam esses serviços podem não só ter mais subsídios para seus trabalhos e suas linhas de atuação, mas podem também – ao repassarem para órgãos como polícias ou secretarias de segurança, assistência social etc. – auxiliar na construção de um desenho mais preciso sobre tais crimes. Ronildo Machado, coordenador do Disque-Denúncia de São Paulo, acredita que sim. “Não se pode dizer necessariamente que o maior número de denúncias sobre um determinado tipo de crime significa que ele esteja acontecendo mais. Porém pode-se falar em maior atenção e interesse da população para isso. Então, ao se ter cada vez mais informações sobre certa situação, sabe-se mais exatamente o que de fato é realidade”, diz ele.
A vantagem da sensibilidade
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No primeiro caso, a existência de uma organização da sociedade civil por trás do serviço é determinante. Elas agregam experiência e a sensibilidade para lidar com determinados assuntos e situações. “Ter uma pessoa treinada, com uma palavra firme, que passa segurança e sabe orientar sobre como proceder é crucial nessas horas”, diz Lauro Monteiro, coordenador da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), que operou durante seis anos o disque-denúncia do Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil. O serviço havia sido iniciado pela Abrapia e, depois, incorporado ao Ministério da Justiça.
Além da experiência das ONGs, o fato de os denunciantes serem atendidos por organizações da sociedade civil, e não pela polícia, também compete para as pessoas sentirem mais confiança para denunciarem. “Os indivíduos têm um certo medo de falar com a polícia, o que poderia impedir novas denúncias. Ao serem atendidas por pessoas que não são policiais, a comunicação é facilitada; elas não são interrogadas, são entrevistadas”, explica Borges. Além da sensibilidade para determinado assunto, ao serem ONGs à frente de serviços de denúncia a iniciativa ganha autonomia. “Isso nos permite ter visão crítica”, diz Machado. “O serviço não muda ou desaparece de acordo com os governos. Ele trabalha em parceria”, adiciona Borges.
Já o anonimato é condição quase imprescindível para que as pessoas não se sintam ameaçadas com a possibilidade de descobrirem quem são ou de receberem retaliação. “Os atendentes são orientados a não perguntarem nada sobre identificação e, caso recebam espontaneamente dos denunciantes, são instruídos a não anotarem”, relata Machado.
Outra coisa que contribui diretamente para consolidação desses serviços é a confiança e a eficiência que vêm transmitindo à população. Isso acontece, primeiro, quando as denúncias se transformam em ações reais, concretas. Ou seja: indiciamentos, prisões, resgates, processos por perdas e danos etc. Além disso, poder acompanhar o que se segue à denúncia também faz com que os cidadãos, ao saberem exatamente o que está acontecendo, sintam mais confiança no serviço. Saber o que é feito com a informação passada, poder acompanhar os procedimentos policiais, jurídicos ou de outra ordem e obter informações sobre o desenrolar dos indiciamentos são, então, instrumentos que propiciam não apenas participação, mas também ajudam a construir a confiança de que um serviço desses precisa.
No caso de serviços de denúncias contra racismo ou discriminação por escolha sexual, a orientação sobre como proceder, o suporte jurídico, a conscientização sobre o que, como e quando pode ser feito e o acompanhamento, de um modo geral, são as ferramentas que ajudam a criar tal confiança. “A denúncia é uma parte. Tem que haver o depois, a apuração, e isso tem que ser feito de modo eficiente e rápido, para que os denunciantes possam perceber que suas ações surtem efeitos”, diz Monteiro, da Abrapia. “As pessoas, quando vêem que a informação que passam pode acarretar conseqüências ou até mudanças concretas, estimulam-se a denunciar o que acontece com elas ou com conhecidos e, além disso, divulgam o serviço”, diz Lucimar, do Disque-Racismo que, por falta de recursos, está temporariamente parado. O convênio com o Ministério da Saúde não foi renovado.
Falta de visibilidade
Lucimar é uma das que acreditam que a falta de divulgação é um dos principais fatores para que um serviço de denúncias não renda tudo que pode render. O primeiro motivo é que a falta de divulgação pode fazer com que o serviço – não sendo devidamente conhecido – pode não conseguir se legitimar e, assim, deixar de obter incentivos ou recursos financeiros para se manter. Porém o mais importante é que as pessoas, ao terem pouca consciência sobre a existência desses serviços, não fazem o uso pleno que poderiam fazer.
O coordenador do Disque-Denúncia de São Paulo também defende que é necessária uma maior divulgação dos canais de denúncias. “Apesar de o número do serviço vir recebendo cada vez mais denúncias, foi a partir de abril, quando o telefone começou a ser divulgado nos ônibus e vans da cidade (por determinação da Lei Municipal nº 13.481), que a quantidade de telefonemas saltou”. No Rio de Janeiro, o número do Disque-Denúncia já é divulgado nos ônibus há sete anos. “E isso contribuiu muito para que o serviço crescesse, se tornasse conhecido e, depois, virasse referência para outros estados. Por causa disso, atualmente estamos envolvidos também com a operação dos serviços de Recife e Campinas”, conta Borges.
Lauro Monteiro é outro que defende com veemência a maior divulgação dos serviços, principalmente aqueles que são direcionados para as minorias ou para assuntos específicos e que, por isso mesmo, têm menos visibilidade ainda. “Normalmente, os canais de denúncias que trabalham diretamente com as polícias têm mais divulgação”, lembra. Ele ressalta que a consolidação destes canais de denúncias pode ser um processo “longo e lento e, às vezes, precisamos mudar a cultura das pessoas. Ou seja, para que a sociedade possa participar mais, falta informação e mudança cultural. E isso só se consegue com a maior divulgação”, diz ele, com a experiência dos seis anos à frente do Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil. Desde fevereiro o serviço não é mais operado pela Abrapia. A instituição, durante o período em que esteve à frente da iniciativa, recebeu 55.706 telefonemas. O Ministério da Justiça não renovou o convênio, afirmando que o próprio governo vai operar um serviço, centralizando todos os tipos de denúncias.
Apesar disso, Lauro não deixa de anunciar o mais que pode o número do serviço. Ele, coerentemente, explica o porquê: “Mesmo com o governo operando o serviço, o número foi mantido, e isso é uma vitória. As pessoas já o conhecem relativamente, ele está consolidado. Não faria sentido mudar. Nós continuamos divulgando sempre. Porque o número não é do governo ou da Abrapia. É do povo, que tem o direito de ter esse canal de comunicação e exercício de cidadania”.
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