Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original:
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estima-se que cerca de 500 mil crianças e adolescentes são vítimas do trabalho doméstico no país. Em junho, na cidade colombiana de Cartagena, foi realizada a II Reunião Técnica Latino-Americana e do Caribe sobre Trabalho Infantil Doméstico em Casas de Terceiros, que se dedicou a analisar estratégias de combate ao trabalho infantil na região. Uma das organizações brasileiras que marcaram presença no evento foi o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), de Pernambuco, que desenvolve um projeto de prevenção e enfrentamento desse problema, e está lançando nesta semana a campanha “Ela não brinca em serviço”, que pretende divulgar dados sobre as condições corretas em que as adolescentes podem trabalhar como domésticas. Nesta entrevista, a assistente social Marylucia Mesquita, coordenadora do Cendhec, falou sobre os resultados da reunião, definida por ela como uma oportunidade de fortalecer parcerias estratégicas entre os segmentos governamentais e a sociedade civil organizada. Segundo Marylucia, não basta sensibilizar a sociedade e os adolescentes envolvidos precocemente no trabalho: é preciso investir em programas de emprego, renda e educação para suas famílias.
Rets – Que impressões e resultados você trouxe da II Reunião Técnica Latino-Americana e do Caribe sobre Trabalho Infantil Doméstico em Casas de Terceiros?
Marylucia Mesquita – O evento teve como objetivos avaliar as ações implementadas até o presente momento em termos da prevenção e do enfrentamento do trabalho infanto-juvenil doméstico. Existem quatro países que iniciaram a experiência-piloto com o apoio da Organização Internacional do Trabalho, da Save the Children e do Unicef: Brasil, Paraguai, Peru e Colômbia. Além de socializar e avaliar as experiências desses países, o evento teve como objetivo envolver outros países nessa luta, daí estiveram presentes República Dominicana, Honduras e outros.
No Brasil, a experiência vem sendo desenvolvida em quatro cidades: Recife, através do Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec); em Belém, através do Cedeca/Emaús; em Belo Horizonte, através do Circo de Todo Mundo; e em Salvador, através do Ceafro.
O que penso em relação ao evento é que se constituiu em mais um momento de fortalecimento de parcerias estratégicas entre os segmentos governamentais e a sociedade civil organizada, considerando que muito recentemente vêm sendo empreendidas ações no sentido de retirar da invisibilidade uma problemática que por muito tempo esteve oculta: o trabalho doméstico de crianças e adolescentes em casas de terceiros.
Ao final do evento, foi deliberada uma carta de recomendações quanto à erradicação do trabalho infantil doméstico na América Latina e no Caribe. O documento intitulou-se “Carta de Cartagena das Índias – Construindo a América Latina e o Caribe sem Trabalho Infantil”.
Rets – E o quais foram as recomendações?
Marylucia Mesquita - Várias foram as recomendações do encontro, e algumas merecem destaque. Elas trataram de enfrentar a problemática do trabalho infantil, em geral, e do trabalho infantil doméstico, em particular, dentro do contexto social, cultural e político da América Latina e do Caribe.
É importante estabelecer, em cada país da região latino-americana alianças entre os grupos que trabalham no tema da infância, para impulsionar a construção de políticas nacionais de proteção integral como prioridade dentro da política social e econômica dos países.
A legislação deve abordar o tema da proibição do trabalho antes dos 15 anos, garantindo o ciclo de educação básica para todas as crianças e adolescentes (no Brasil, a proibição é antes dos 16 anos; antes dos 14, somente na condição de aprendiz, que não se aplica para o trabalho doméstico de adolescentes).
A regulação e proteção do trabalho entre os 15 e 18 anos de idade deve incluir o trabalho doméstico como figura autônoma dentro da legislação laboral, dando critérios básicos para dar visibilidade a essa atividade (o trabalho protegido, no Brasil, é entre os 16 e 18 anos).
Para dar cumprimento à legislação é necessário criar sistemas de proteção e monitoramento que devem vincular instituições governamentais e ONGs com competência na área da infância. As instituições públicas devem montar estratégias para garantir o cumprimento da lei trabalhista, que proíbe o trabalho antes da idade legal.
É necessário fazer campanhas de prevenção e erradicação do problema nas áreas mais críticas, com prioridades estabelecidas para proteger os direitos das crianças e adolescentes fora da idade legal para o trabalho, acompanhadas de programas de atenção integral às famílias de origem. Afinal, não basta sensibilizar a sociedade, as crianças e os adolescentes envolvidos precocemente no trabalho se não inserirmos suas famílias em programas de emprego, renda e educação.
Vou destacar aspectos pelos eixos: quanto à educação, é uma atividade essencial para crianças e adolescentes, lhes permitindo adquirir o desenvolvimento de suas habilidades e potencialidades básicas para posterior desempenho em suas vidas. Com o fim de melhorar as oportunidades educativas é imprescindível considerar todos os aspectos que direta ou indiretamente interferem para este fim: nutrição, saúde, proteção, lazer, cultura, esportes e convivência familiar saudável.
Não é suficiente ampliar coberturas para inserção nas escolas. É necessário garantir a qualidade dessa educação que é oferecida à população infantil e juvenil.
A educação deve apontar para a construção da cidadania de crianças e adolescentes e incorporar a perspectiva de gênero e raça nos currículos escolares para proporcionar o desenvolvimento, o fortalecimento de valores como igualdade, justiça e liberdade que a humanidade tem conquistado ao longo de sua existência, mas que, ao mesmo tempo, lhes têm sido negados. O sistema econômico vigente não tem proporcionado inclusões, mas multiplicado exclusões de vários níveis.
Sobre o direito ao lazer, podemos dizer que, juntamente com a educação, ele permite ao indivíduo desenvolver suas habilidades sociais, afetivas, físicas e cognitivas. O excessivo número de horas a que as crianças e adolescentes inseridas precocemente no trabalho doméstico estão submetidas afeta negativamente sua capacidade de aprendizagem e não lhes permite experimentar e desfrutar dos jogos, da brincadeira e da fantasia, empobrecendo, assim, seu mundo psicológico e anulando as capacidades de criação e enfrentamento das dificuldades da realidade.
Considerando a obrigação compartilhada entre família, sociedade e Estado de proteger os direitos de crianças e adolescentes, é prioritário impulsionar a participação ativa deles nas suas comunidades, no desenho, na organização, na gestão e no controle dos diferentes planos e projetos elaborados para enfrentar o problema do trabalho infantil doméstico.
E, ao mesmo tempo, é necessário sensibilizar diferentes organizações – religiosas, esportivas, culturais etc. – às quais podem se vincular crianças e adolescentes no sentido de contribuir para que exerçam seu direito à participação.
É necessário, ainda, documentar as experiências positivas e negativas extraídas das intervenções e dar-lhes ampla difusão. As intervenções devem ter uma forte ênfase do trabalho com as famílias, assim como a mobilização de todas as crianças e adolescentes na sua comunidade.
Como estratégias para intervenção programática do problema do trabalho infantil doméstico, é preciso considerar e incluir ações de promoção social, divulgação de direitos das crianças e adolescentes, sensibilizando a sociedade, prevenindo contra os riscos do trabalho infantil e eliminando-o.
É fundamental garantir a continuidade dos projetos de intervenção que vêm sendo desenvolvidos, possibilitando-lhes novos recursos. Igualmente, é recomendável expandir as experiências consideradas bem-sucedidas, buscando auto-sustentabilidade como forma de que as intervenções não se encerrem quando se encerrarem os apoios externos.
Rets – Qual foi a posição manifestada pelo governo brasileiro em relação a esse tema?
Marylucia Mesquita - O governo brasileiro vem demonstrando apoio a esta problemática à medida que apóia ações do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil e quando, através de suas instituições, como as Delegacias Regionais do Trabalho, os Ministérios Públicos e Ministérios Públicos do Trabalho, vem fortalecendo as ações de fiscalização.
Rets - Estima-se em torno de 500 mil o número de crianças e adolescentes no trabalho doméstico no Brasil. E o trabalho infanto-juvenil tem ainda uma íntima relação com a pobreza. Na medida em que muitos jovens trabalham como forma de complementar a renda familiar, que alternativas têm se mostrado eficazes para combater esse problema?
Marylucia Mesquita - Realmente, o trabalho infanto-juvenil está diretamente vinculado à questão da pobreza. Na verdade, trata-se de um ciclo vicioso que impõe para as famílias de baixa renda a inserção precoce de seus filhos e filhas. Ao mesmo tempo, essa inserção precoce no trabalho infantil desqualifica mão-de-obra e compromete o desenvolvimento social, psíquico e educacional desses jovens, cuja tendência será permanecer na situação de pobreza. Na verdade, trata-se de uma mudança de sistema econômico, mas, ao mesmo tempo, trata-se também de modificar a cultura que sustenta esse tipo de prática.
Daí as alternativas são articuladas entre si: a inserção das meninas em programas sociais como, por exemplo, o Programa para Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Bolsa-Escola; a inserção das meninas e de suas famílias em oficinas socioeducativas que possibilitem (re)pensar os prejuízos dessa inserção precoce, como a defasagem escolar, a perda da infância, dos sonhos, a ruptura nos laços familiares e comunitários... Outras estratégias são a mobilização dos segmentos governamentais e não-governamentais no sentido de potencializar responsabilidades em termos da prevenção e fiscalização do trabalho doméstico de crianças e de adolescentes fora da idade legal; o lançamento de campanhas educativas e de prevenção ao trabalho infantil domestico, para sensibilizar a sociedade, fazendo-a compreender que a inserção precoce no trabalho doméstico é um problema e não uma solução; a inserção dos familiares dessas crianças e adolescentes em programas de emprego e renda e educacionais; a profissionalização de adolescentes com idade legal para o trabalho (16 anos); a sensibilização do segmento empresarial para que divulgue através de seus serviços o combate ao trabalho infantil doméstico, bem como possa oferecer alternativas de empregabilidade para essas famílias e para os adolescentes em idade legal.
Rets - Foram debatidas medidas de cooperação internacional para combater o tráfico de crianças?
Marylucia Mesquita - Não, essa discussão não foi realizada durante o encontro.
Rets - O Brasil ratificou em 2001 a Convenção nº 182 da OIT (sobre piores formas de trabalho infantil), assumindo, portanto, uma série de compromissos. Como anda o cumprimento dessa agenda? Houve avanços?
Marylucia Mesquita - A Convenção nº 182 foi um dos aspectos polêmicos do encontro. Isso porque o trabalho infantil em casas de família não é caracterizado como uma das piores formas de trabalho infantil. Para a própria Organização Internacional do Trabalho esse debate se coloca, atualmente, em aberto, considerando que não houve uma posição consensual para vários palestrantes de diversos países vinculados à OIT. Ora comparecia o entendimento de que o trabalho infantil doméstico deve estar entre as piores formas de trabalho infantil, ora comparecia o entendimento de que não deveria. Considero que houve avanços no sentido de que a discussão, que há um tempo não se enfrentava, da questão do trabalho infantil doméstico vem à tona e com posições diferenciadas. O debate nesse sentido foi e é bastante oportuno.
Para o Cendhec, desde o período da aprovação da Convenção 182 tínhamos o entendimento de que não deveria existir uma lista de piores formas de trabalho infantil. Toda e qualquer forma de trabalho para crianças e adolescentes com menos de 16 anos (idade legal para admissão ao trabalho, no caso do Brasil) deve ser considerada pior forma de trabalho infantil. Isso porque rouba a infância, prejudica os estudos, a convivência familiar e comunitária etc. Toda forma de trabalho infantil é danosa e, se temos uma lista de piores formas, terminamos por fortalecer que a ação dos governos se restrinja a apoiar e erradicar apenas aquelas apontadas na Convenção. Não se enfrenta o trabalho infantil enquanto questão social. O legal está impondo restrições aqui. Outra questão é que considerar a “utilização, procura e oferta de crianças para fins de prostituição, de produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos” como uma pior forma de trabalho infantil é um equívoco legal. Estar no narcotráfico ou envolvido com exploração sexual é situação de risco, mas não deveria ser considerado trabalho. A CLT define o que é considerado profissão. O que nós propomos – particularmente a nossa advogada, Cida Pedrosa – é que se faça uma ampla discussão do que é penosidade. Entre os 16 e 18 anos, temos que ter, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente, o trabalho protegido, ou seja, garantir horário para freqüentar e acompanhar a escola, não trabalhar no horário noturno (entre as 22 horas de um dia e as 5 horas da manhã do outro), ter direito ao lazer, à cultura etc.
Rets - No que consiste a campanha que vocês estão lançando e quais serão suas ações? Existem outras ONGs parceiras dessa iniciativa?
Marylucia Mesquita - O nome da campanha é "Ela não brinca em serviço", e estamos lançando em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Região Metropolitana do Recife, o Grupo Interinstitucional Temático para a Prevenção e Enfrentamento ao Trabalho Infanto-Juvenil Doméstico (GIT) e o Fórum Estadual de Erradicação do Trabalho Infantil. A iniciativa é educativa e pretende alertar a sociedade sobre a inserção precoce de meninos e meninas em atividades domésticas. Haverá spots e programas de rádio, anúncios para jornais, camisas, cartazes, um VT de 30 segundos, banner e folder para fazer essa ação de educação. Nossa intenção também é divulgar informações corretas sobre que condições as adolescentes podem trabalhar como domésticas em casa de famílias, o que só é permitido a partir dos 16 anos, e elas, a exemplo dos demais trabalhadores, devem ter os direitos trabalhistas e previdenciários garantidos. A campanha tem parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), Save the Children/Reino Unido, Pommar Usaid Partners e Unicef, Rede ANDI, Prefeitura do Recife e Bemfam.
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer