Autor original: Fausto Rêgo
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Como tantos outros “paraísos naturais”, a Ilha Comprida – um dos últimos redutos de área de restinga no estado de São Paulo – tem sido vítima, ao longo dos anos, da especulação imobiliária. O decreto estadual nº 30.817/89, que transformou a região em Área de Proteção Ambiental, mostrou-se insuficiente para defender os ecossistemas locais. Agora, até mesmo os termos da lei podem ser alterados para legitimar a ação predatória. E pior: com apoio do poder público.
Defendida pela prefeitura de Ilha Comprida, a proposta de alteração total do decreto poderá regularizar cerca de 200 mil lotes, incentivando uma intensa urbanização na ilha, numa séria ameaça a córregos, mangues e algumas espécies raras de animais, sem contar os prejuízos à atividade pesqueira – a área da colônia de pescadores de Trincheira, por exemplo, já teve boa parte de sua vegetação destruída.
A proposta se encontra em discussão no Conselho Estadual do Meio Ambiente de São Paulo, mas ambientalistas se mostram preocupados com a possibilidade de uma análise tendenciosa. Em setembro do ano passado, uma das maiores autoridades da América Latina em mangues, a professora Yara Novelli, da USP, que participava da Comissão Especial de Biodiversidade, Florestas, Parques e Áreas Protegidas, abandonou os trabalhos, denunciando que a maioria dos seus colegas já tratava o loteamento da ilha como “fato consumado, à revelia do disposto pelas normas legais, pelo Princípio da Precaução e pela memória técnica” [a íntegra da carta está disponível para download, ao lado].
A Sociedade Protetora da Diversidade das Espécies (Proesp), uma das mais antigas organizações ambientalistas da região de Campinas (SP), classifica o problema como um crime ambiental contra a biodiversidade marinha no estado e um perigoso precedente para todas as Unidades de Conservação - e vem procurando mobilizar a opinião pública. “Se não atuarmos na defesa desta berçário marinho, estaremos levando à morte importante reduto pesqueiro do nosso estado e do Atlântico brasileiro”, garante a presidente da entidade, Márcia Corrêa, que atuou ao lado de Yara na Comissão de Biodiversidade do Consema.
O Coletivo de Entidades Ambientalistas de São Paulo – do qual a Proesp faz parte – encaminhou uma representação à Procuradoria do Estado, na tentativa de barrar a proposta de alteração. Na entrevista a seguir, Márcia fala sobre essa representação, comenta o desinteresse das autoridades em relação ao caso e relata o que pode acontecer se a lei for de fato modificada. “Seria a transfiguração total desse ecossistema, principalmente da franja costeira, com enormes desmatamentos, ocupação em terrenos impróprios e o aterro de grandes áreas de manguezal”, adverte.
Rets - Que alteração está sendo proposta e de onde partiu essa iniciativa?
Márcia Corrêa - Trata-se de um plano de consolidação para ocupação predatória da Ilha Comprida, constante dessa minuta de Decreto Estadual para regulamentação da Área de Proteção Ambiental (APA), proposta pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Estado de São Paulo e pela Prefeitura da Estância Balneária de Ilha Comprida. Essa alteração permite o uso indevido daquele espaço territorial, protegido por leis, e vem camuflada de “planejamento e gestão”, alterando radicalmente o formato do zoneamento atual e instituindo um gerenciamento por porcentagem de ocupação. A lei manda que qualquer ocupação em Área de Proteção Ambiental deve “proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais”. As intensas e diversificadas pesquisas realizadas por renomados atores da academia nas áreas de ensino e pesquisas atestam a riqueza inestimável da diversidade biológica e extrema vulnerabilidade dos ecossistemas presentes na região do complexo estuarino-lagunar de Cananéia-Iguape, onde a Ilha Comprida está inserida.
Rets – E quais seriam as implicações da aprovação dessa proposta?
Márcia Corrêa - A pretensão da Secretaria de Meio Ambiente e da prefeitura da estância balneária - se receber o aval dessa comissão e aprovar na plenária do Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) a minuta de regulamentação de Decreto da “nova” APA da Ilha Comprida - é viabilizar metas globais de ocupação e conseqüente parcelamento de 30% de área da ilha por assentamentos urbanos e empreendimentos. Esta porcentagem, parcelada em lotes de 250 metros quadrados seriam distribuídos espacialmente segundo a instituição do “gerenciamento por taxa de ocupação”. Esta prática transformaria, por si só, este espaço especialmente protegido em um grande canteiro de obras, em um espaço onde não existe fonte de água doce, de lençóis freáticos rasos e alta salinidade. Seria a transfiguração total desse ecossistema, principalmente da franja costeira, com enormes desmatamentos, ocupação em terrenos impróprios e o aterro de grandes áreas de manguezal. Além dos inevitáveis desastres ambientais, acarretará um acirramento dos conflitos pela posse da terra com os pequenos produtores – incluindo os pescadores –, com a redução da disponibilidade de áreas para o plantio de roças de subsistência.
As argumentações de bom senso contrárias a essa alteração são infindas. É praticamente e comprovadamente inexeqüível essa ocupação pretendida, pelo sério impacto nesses ecossistemas.
Rets - Qual tem sido a reação das autoridades diante da degradação e dos loteamentos irregulares da Área de Proteção Ambiental da Ilha Comprida?
Márcia Corrêa - A professora Yara Novelli abandonou essa comissão – convidada que era pela bancada ambientalista do Consema – quando ficou clara a intenção governamental de aceitar essa alteração proposta pela administração pública de Ilha Comprida. Os técnicos da Secretaria de Meio Ambiente que elaboraram junto com a Prefeitura de Ilha Comprida essa minuta foram substituídos e a maioria dos participantes dessa comissão nem conhecia profundamente a ilha.
Rets - A professora Yara Novelli, pesquisadora da USP e uma das maiores autoridades ambientais da América Latina, abandonou a comissão que estudava as alterações. Houve favorecimento à proposta de mudança da legislação dentro da comissão?
Márcia Corrêa - A forma de ocupação do espaço na região lagunar pode resultar em comprometimento das potencialidades. Os loteamentos nessa ilha já acontecem: casas sobre as dunas e restingas, aterramentos de córregos, derrubada de matas, degradação dos manguezais, dunas e áreas úmidas de vital importância para o sistema existente. Segundo a professora Yara, “qualquer ocupação do espaço físico da Ilha Comprida tem que respeitar as características geomorfológicas do terreno e sua reduzida capacidade de suporte, além de sua posição como uma das peças-chave que compõem o complexo estuarino-lagunar”. Os órgãos fiscalizadores têm sido insuficientes para estancar essa degradação, por absoluto desmonte no corpo técnico dessas instituições, como o Departamento de Proteção aos Recursos Naturais e a polícia ambiental.
Rets - O Ministério do Meio Ambiente já se manifestou sobre o caso?
Márcia Corrêa - Não houve, até agora, nenhuma manifestação do Ibama ou de qualquer órgão federal. Apenas apoio de alguns congressistas à Procuradoria da República, solicitando empenho na preservação deste importante patrimônio do país.
Rets - Qual é, no momento, a situação legal da proposta de alteração? Como será sua tramitação e que iniciativas os ambientalistas estão tomando para combatê-la?
Márcia Corrêa - A Comissão Especial de Biodiversidade, Florestas, Parques e Áreas Protegidas tem sido convocada periodicamente pela Secretaria do Meio Ambiente, no intuito de acelerar esse processo, mas não tem obtido quorum dos conselheiros para deliberações importantes. O Coletivo de Entidades do estado representou na Procuradoria da República do município de Santos, pedindo providências, em outubro passado, e reapresentou um dossiê mais completo sobre essa alteração agora em julho. Como se trata de um importante patrimônio ambiental e histórico do país, repudiamos a “Proposta de alteração total dos termos do Decreto Estadual n° 30.817/89”, que regulamenta a Área de Proteção Ambiental de Ilha Comprida, por entendermos que a motivação do Governo do Estado de São Paulo ao criar o Consema, em 1983, foi para ele “coordenar o esforço que a sociedade civil estava desenvolvendo em defesa do meio ambiente de São Paulo”, conforme pronunciamento do então governador Franco Montoro na cerimônia de criação do Consema-SP, mesmo criador deste decreto que se pretende agora alterar.
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