Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
Por trás das grades das penitenciárias brasileiras, existe muito mais do que violência e pessoas alijadas do convívio social. Há possibilidades reais de transformação que, se bem aproveitadas, representam exatamente o objetivo de colocar alguém na prisão: a mudança no comportamento do indivíduo. Desenvolver projetos junto a pessoas apenadas, sentenciadas, presas etc. não se trata somente de pena ou de filantropia para com pessoas que estão, em última instância, fragilizadas. É ajudar a cumprir mais rápida ou facilmente a função que o Estado tenta desempenhar: ressocializar.
Exemplos mais comuns destes projetos são os de ensino fundamental ou médio e os que ensinam um ofício para presos e presas. O motivo é simples: depois de sair das penitenciárias, uma das principais dificuldades é justamente encontrar um trabalho ou uma ocupação longe da criminalidade ou dos atos infracionais que levaram a pessoa à prisão. Além disso, o antecedente criminal também não ajuda no processo de ressocialização. Assim, emprego - que já é escasso para toda a população brasileira - torna-se ainda mais difícil se a pessoa não se formou no ensino médio e, pior, no fundamental, ou se não tem a especialização em algum ofício. Nesse contexto, o ensino de atividades que as pessoas possam desempenhar sozinhas, de forma autônoma - como o artesanato -, passa também a ser mais valorizado.
É o exemplo do projeto "Mãos à Arte", desenvolvido pela ONG Bioética no presídio feminino Talavera Bruce, em Bangu, Rio de Janeiro. As presas aprendem a fazer quadros, talhas em madeira, bonecas de plástico, cavalos de resina, cortinas, bolsas, chapéus, roupas, almofadas, toalhas, cartões de papel vegetal, caixas para presentes, materiais em crochê, tricô e até abajures. Parte dos artigos produzidos é feita com material reciclável, como jornal, garrafas PET, palitos de picolé e anéis de latinhas de alumínio. A intenção é ensinar um ofício para que as mulheres, ao saírem dali, possam ter uma atividade autônoma, no caso de não conseguirem emprego. "Ao aprender técnicas, qualquer pessoa pode vislumbrar voltar para o mercado de trabalho; ainda mais as pessoas presas, que não têm muitas perspectivas", diz a advogada Priscila Leser, integrante da Bioética e coordenadora do projeto. Recentemente, a Bioética ajudou a criar uma cooperativa para comercializar os produtos elaborados pelas presas. "Hoje, sexta-feira, dia 18, tem uma exposição na Veiga de Almeida com as peças delas. No dia 29, tem uma na Petrobras", divulga Priscila.
Existem também as iniciativas - normalmente desempenhadas pelas próprias direções das penitenciárias - nas quais os presos trabalham para a comunidade; para empresas, fora dos presídios (no caso de as pessoas cumprirem pena em regime semi-aberto); ou dentro das próprias penitenciárias, em oficinas - normalmente de móveis ou de confecção de tecidos - instaladas dentro das construções. Isso acontece, por exemplo, no presídio Eduardo de Oliveira Vianna, em Bauru (SP), que comporta o quarto maior parque industrial da cidade. A Lei de Execução Penal (LEP) prevê esse tipo de trabalho das pessoas sentenciadas e estipula que, a cada três dias trabalhados, um é diminuído da sentença (art. 126, § 1º). Existem ainda outros tipos de programas - sejam voltados para presos, para seus familiares, para todos os integrantes do sistema carcerário etc. - que pretendem contribuir nesse processo de ressocialização dos indivíduos apenados.
Desperdício ou investimento?
Porém, apesar de a Lei de Execução Penal - que estabelece regras para aplicação das penas dentro das penitenciárias e tem por objetivo "proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado" - estar perto de completar 20 anos (é de 1984), com um texto que ao menos tenta humanizar as prisões, a situação dentro da maioria das penitenciárias está longe de ser a ideal para uma pessoa se ressocializar. Além de a força e a violência serem acionadas constantemente, é grande a dificuldade tanto de agentes carcerários e autoridades quanto da sociedade em geral, e até de presos e seus familiares, parra enxergar o período prisional como um momento de mudanças de comportamento, em que a pessoa deve - em vez de ser alijada do convívio e dos valores sociais - reaprendê-los, recuperá-los.
No país, hoje em dia, dificilmente se pensa em penitenciárias sob o prisma de um espaço onde devem ser trabalhadas questões como trabalho, recuperação de dignidade, pacificação etc. Ainda mais depois das dezenas de rebeliões com mortes, das fugas e, especialmente, da constatação de que chefes do crime organizado vinham - e continuam - comandando seus "negócios" de dentro das instituições. Fernandinho Beira-Mar é apenas o mais conhecido. Com essa realidade, a revolta - não sem razão - é o primeiro sentimento da sociedade. Portanto, falar em projetos junto a presos - essas pessoas que, para grande parte da população, "comem e dormem, sustentadas pelo dinheiro dos impostos" - pode parecer desperdício de tempo e esforço, enquanto existiriam outras prioridades em um país tão cheio de problemas a serem resolvidos.
Mas, ao contrário, pode ser justamente a forma pela qual a sociedade não terá necessidade de se preocupar com penitenciárias crescentemente lotadas e violentas, com criminosos reincidentes. A motivação destes projetos é lógica: atualmente, a grande maioria dos presídios - cuja intenção seria ressocializar a pessoa - faz o oposto, ao retirá-lo do convívio social. Não que as pessoas sentenciadas sejam anjos que merecem toda atenção possível. São, sim, pessoas que cometeram crimes. Mas, por isso mesmo, devem enxergar alternativas, oportunidades que não as façam voltar a cometer a mesma infração. E, uma vez que estão sob a tutela do Estado, este e seus parceiros, como as ONGs, são os responsáveis por isso.
A idealizadora do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri), Ronidalva de Andrade de Melo Nogueira, instituição que atua junto a familiares de presos em Pernambuco, explica: "Há 200 anos, a prisão no Brasil é repressiva, o preso não determina nada sobre si. As penitenciárias brutalizam a pessoa, pioram o homem, tiram a característica de humanidade. Ou seja, as pessoas saem de lá despreparadas para viverem em sociedade, pois não foi isso que aprenderam lá. Elas perdem o sentimento, a sensibilidade. Como vão respeitar alguém se foram desrespeitadas em seus direitos? É essa a pergunta que sempre fazemos no nosso projeto: 'qual o homem preparado nas prisões para viver e voltar à sociedade?'".
O projeto tocado pelo Sempri e pela Fundação Joaquim Nabuco, órgão do Ministério da Educação atuante em Recife, trabalha com familiares de presos da região metropolitana da capital pernambucana – cerca de seis mil pessoas. A iniciativa forma mulheres (do projeto só participam mulheres) para atuarem como agentes de cidadania, para monitorarem todo o sistema carcerário de Pernambuco. Nas aulas, as mães, mulheres, filhas e outras parentes de presos aprendem sobre ética (o que deve ou pode ser feito dentro das penitenciárias), legislação (LEP, Código Penal etc.), direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos Humanos, sua aplicação), entre outros assuntos. Depois, passam a prestar atenção em tudo o que vêem, quando vão aos presídios fazer visitas.
"A atuação delas é importante, pois muitas vezes nós, apesar de muitos sermos membros do Conselho da Comunidade (instância prevista na LEP cujos membros devem visitar os estabelecimentos penais, entrevistar presos e apresentar relatórios), somos impedidos de entrar nos presídios. Como a elas não costumam ser negadas visitas, têm mais facilidade", diz Ronidalva. Já foram formadas duas turmas de 30; algumas passaram a ser monitoras permanentes, ligadas ao projeto. "A intenção é ajudá-las a sobreviverem ao estigma, para sustentarem esse processo quando seus pais, filhos ou maridos saírem da prisão", diz Miriam Pires, coordenadora do projeto na Fundação Joaquim Nabuco. E Ronidalva completa, explicando o motivo da opção de trabalhar junto a familiares: "Como elas muitas vezes têm mais acesso aos presos, acabam sendo também um canal para se fazer um trabalho junto a eles, que vivem nos fazendo solicitações através das mulheres, ou até diretamente. Ou seja, ao conscientizá-las, conseguimos conscientizá-los também sobre seus direitos, sobre a humanização necessária nas prisões", diz ela.
Ganhos para a sociedade
Proporcionando chances de os presos de fato se ressocializarem, o ganho não é só deles. A sociedade tem vantagens com isso também, como redução da violência, menos gastos com construção e manutenção de presídios, menos mortes, menos gastos com saúde, com proteção e todas as outras conseqüências direitas e indiretas de fazer as leis valerem e os direitos humanos serem respeitados. "Se você apresenta a oportunidade para a pessoa se ressocializar, praticamente tira a chance de ela ter reincidência e, portanto, pode ajudar a diminuir a criminalidade. A gente vê muita melhora no trabalho dentro do Talavera Bruce. Há muita melhora nas perspectivas das mulheres. Temos avaliações semanais, em que elas fazem relatórios por escrito. Está estampado ali o aumento na auto-estima das presas", testemunha Priscila, da Bioética.
Berenice Gianella, presidente da Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel (Funap), concorda que o ensino de ofícios ou o próprio trabalho dentro das penitenciárias são ótimas ferramentas para auxiliar na recuperação das pessoas que cumprem sentença. "O trabalho é dignificante. Ajuda, como eles próprios dizem em um vídeo que fizemos recentemente, 'a fugir do inferno da mente parada'. Ajuda-os na questão da disciplina, na profissionalização, aqueles que trabalham para empresas que os contratam recebem salários, tem o aspecto da remissão da pena, uma série de vantagens", diz Berenice. Ou seja, os presos de fato se ressocializam, tomando parte em atividades que realmente trazem para eles a rotina e as características do convívio social.
De acordo com o censo realizado recentemente pela Funap no estado de São Paulo, 45 empresas públicas e privadas empregam hoje 792 presos e há três contratos em negociação. No ano passado, eram 20 empresas, totalizando 500 empregos. A Funap é vinculada à Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, órgão que vem desenvolvendo iniciativas em parceria com ONGs para tratamento e atendimento aos presos do estado. Tanto que, desde 2001, foram criados 15 Centros de Ressocialização, espécies de presídios menores, que atendem até 210 sentenciados e cuja gerência fica a cargo das ONGs. Elas cuidam dos departamentos jurídico, médico, de assistência social, de roupas e de alimentação dos presos. Já a segurança continua a cargo do governo.
"A contribuição das ONGs pode ser vista em alguns pontos: elas são compostas por pessoas da comunidade em que o Centro de Ressocialização está inserido - isso é uma exigência para o estabelecimento da parceria. Assim, conhecem o contexto e estão fazendo algo por suas próprias comunidades. Além disso, têm mais flexibilidade do que um órgão público para atuar no dia-a-dia e, finalmente, trazem a vantagem de terem uma outra visão, uma outra abordagem, outra sensibilidade, até para lidar com alguns assuntos", diz Berenice.
Reciclagem necessária
O "tratamento" para preservar junto aos presos e presas as noções do que é viver em sociedade não passa só por oferecer perspectivas de trabalho. Há aspectos subjetivos envolvidos também, como auto-estima, expressão, perceber-se como cidadão etc. A valorização das pessoas, de seus conteúdos, de suas histórias e de suas vidas, por mais limitadas que se encontrem, é uma forma de privilegiar esse lado. E é a isso que se presta o jornal Dia de Visita, projeto de sete alunos do último ano do curso de jornalismo da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp). "Nossa intenção é mostrar às pessoas um lado que elas não conhecem, o que acontece dentro das prisões, mudar um pouco essa mentalidade que só vê e só ressalta a violência", diz Poliana Brasil, repórter e membro do conselho editorial do Dia de Visita.
O jornal começou suas atividades há menos de um ano, desvelando o que não é visto do lado de fora do presídio Eduardo de Oliveira Vianna, em Bauru (SP), a P-II: histórias sobre os presos, a relação dos detentos com a família, projetos de reabilitação, religião, trabalho, cursos que fazem, perfil de personagens interessantes, além de cartas dos leitores e manifestações culturais como poesias e desenhos dos presos. A receptividade entre os detentos - que se viram retratados e valorizados - foi grande. Tanto que, em um determinado evento que a equipe do jornal não pode cobrir, eles próprios realizaram um suplemento com reportagens escritas e fotos tiradas por eles próprios.
"Nós procuramos salientar que o julgamento deles já foi, já aconteceu. Agora, é hora para reabilitação. E é nisso que toda a sociedade tem que ajudar, ao invés de ver somente a violência já tão associada a este universo. A gente quer que o sistema penitenciário mude, incentivando o que tem de eficaz", pondera Poliana. Em outras palavras, ela quer a mesma coisa que a advogada Priscila Leser - que, para exemplificar a importância e a necessidade de se investir em ressocialização eficiente e transformação real, toma emprestadas as palavras de uma presa do Talavera Bruce, que certa vez questionou: "Se até o lixo pode ser reciclado, por que não eu, ser humano?".
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer