Autor original: Maria Eduarda Mattar
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Um ser humano – da criança de rua a Bill Gates com seus US$ 83 bilhões – é um milagre da vida. Nenhum de nós escolheu a família, a classe social, a nação ou a época em que nasceu. Somos todos filhos da loteria biológica. Parecemos, contudo, não nos dar conta desse acaso que constitui, num mundo tão desigual, uma injustiça. Constatá-la deveria incutir em nós, os premiados, um mínimo de sentimento da dívida pessoal e social para com aqueles que tiveram a infelicidade de nascer em condições criadas pelo colonialismo, a exploração e o descaso político de nossos antepassados.
Frei Betto
Candelária e chacina são palavras que caminham juntas no nosso imaginário há 10 anos, violência e meninos de rua também. Contudo, uma relação um pouco mais perversa sustenta a relação anterior: menino de rua, (in) segurança pública. Assim, a idéia que relaciona as crianças abandonadas com a violência que parece assolar a cidade se constitui na base da reprodução da violência socialmente aceita contra essas crianças.
Há dez anos atrás morriam publicamente, perante um dos principais monumentos da cidade, oito crianças e adolescentes nas mãos daqueles que deveriam estar aí para cuidar deles, para protegê-los. Todavia, achar os culpados individuais daquele crime atroz que nos envergonha é só parte do problema. O fato é que as chacinas, que à época cobravam o saldo de aproximadamente 470 vidas em média anual[1], são um tipo de resposta dos que consideram essas crianças como simplesmente um problema, e com problemas, é claro, devemos acabar.
Lamentavelmente, essa lógica predomina até os dias de hoje.
Com efeito, a idéia da criminalização das crianças e adolescentes que moram nas ruas da cidade, em situação de total abandono (da família, da sua comunidade, da assistência do Estado protetor e do conjunto da sociedade), leva hoje o poder público Estadual, através da Secretaria de Segurança Pública, a declarar "guerra" a trabalhadores informais, desempregados e crianças e adolescentes em situação de rua, como forma de "amenizar a sensação de insegurança dos cariocas"[2].
A sociedade aplaude...
Entretanto, ao invés do combate efetivo ao crime organizado, ao narcotráfico, à corrupção e ao desvio de verbas públicas, a população abandonada é duplamente responsabilizada pela falta de segurança pública, e os esforços do aparelho policial do Estado se deslocam para as ruas de Copacabana e do Centro.
Cabe a pergunta: Que parte da carta constitucional caracteriza crianças e adolescentes abandonados como "menores infratores", "delinqüentes"?
A aprovação e apoio a uma política de caráter higienista como esta é a confirmação da banalização da vida humana, da intolerância frente à pobreza absoluta em nome de um "bem estar" individualista que se conforta em fazer filantropia e caridade para afastar de seus olhares o produto desta sociedade em que a riqueza socialmente produzida não é socializada.
Consideramos que a criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis[3].
Assim, propomos pensar nossas ações e metodologias de intervenção junto a essas crianças e adolescentes a partir e em respeito a estes princípios; deles desprender-se-ão os objetivos pedagógicos a serem atingidos.
Segundo a lei do nosso país, o direito à liberdade compreende o direito de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários; o direito à opinião e expressão; à crença e ao culto religioso; a brincar, praticar esportes e divertir-se; a participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação; a participar da vida política; a buscar refúgio, auxílio e orientação. No entanto, nada é perguntado às crianças e adolescentes quando são recolhidas das ruas, discriminadas, de fato, pela condição social em que se encontram.
O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais. Porém, operações de limpeza, como a chamada "cata tralhas" da prefeitura da cidade, retiram os pertences de mendigos, meninos e meninas, em operações conjuntas da guarda municipal e da COMLURB.
É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. Todavia, alguém já perguntou a uma criança de sete ou oito anos como ela se sente ao ser abordada por um grupo da Policia Civil ou Militar e conduzida a um pátio do corpo de bombeiros, sem destino claro? E se esta situação não constrange, vexa e aterroriza as crianças, então qual o sentido dessa lei?
O que estamos ensinando às nossas crianças além de desconfiança, intolerância e soluções violentas?
É demasiado grave a presença de crianças e adolescentes abandonados nas ruas. No entanto, os meninos e meninas que perambulam pelas ruas da cidade não pediram para nascer nas condições em que nasceram. Muitos são os motivos que os levaram para lá, muitos os sofrimentos que desde muito cedo criaram desconfiança e medo justificados nessas crianças e adolescentes. Nessa estrada, poucas mãos se estenderam. Muitas se aproximaram com um dedo acusador ou com um punho ameaçador.
Notadamente, a História dá conta de uma ausência de investimentos em Políticas Públicas Sociais, o que agrava consideravelmente o quadro da pobreza no Brasil. O Rio de Janeiro, apesar de ter uma das maiores arrecadações do país, não fica atrás, pois não dispõe de um sistema que garanta a implementação e a efetivação de Políticas Públicas, especialmente na área da infância e juventude.
Não queremos que meninos e meninas continuem a viver abandonados nas ruas, pois isto é uma clara forma de exclusão social, que fere seus direitos mais básicos, expondo-os a toda forma de violência e degradação. A questão é: Para onde vão essas crianças? Quais os programas educativos e de assistência disponibilizados pelos Governos Estadual e Municipal?
Queremos, sim, um Rio legal e, acima de tudo, justo! Justo com todas as crianças e jovens, homens e mulheres. Que dê oportunidades iguais a todos, sem distinção e que garanta, com absoluta prioridade todos os direitos preconizados na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Quarta-feira, 23 de julho de 2003.
Rede Rio Criança.
[1] Levantamento na mídia oficial compreendendo os anos 1991, 92 e 93, feito pelo Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua.
[2] Declaração do Secretário de Segurança Pública Anthony Garotinho, ao meios de comunicação, por motivo do lançamento da operação "Tolerância Zero" como parte do projeto "Zona Sul Legal"
[3] Lei Federal 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente)
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