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“A resposta terá de vir de nós mesmos”

Autor original: Fausto Rêgo

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“Saímos com a certeza de que perderam força conceitos muito importantes para nós, como os que se referem ao direito à comunicação, às questões de gênero, à governabilidade democrática da Internet, ao domínio público, à identidade cultural e ao incentivo ao uso de software livre, entre outros”.

A frase acima foi extraída do documento elaborado pelo Caucus* da América Latina e do Caribe (Caucus LAC) ao final da reunião intersessional dentro do processo preparatório para a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, realizada em Paris, de 15 a 18 de julho. Ela reflete a decepção do grupo quanto aos resultados de mais um encontro de preparação para a conferência, que vai debater o impacto das tecnologias de informação e comunicação (TICs) na sociedade.

Uma das signatárias do documento foi Olinca Marino, coordenadora de Informações da organização mexicana La Neta, ponto focal do Caucus LAC e integrante do Programa de Direitos na Internet da Associação para o Progresso das Comunicações. Em visita à RITS, ela concedeu esta entrevista, na qual faz uma análise de como está sendo conduzido o processo da Cúpula, reivindica maior espaço para uma participação mais ativa das organizações da sociedade civil e comenta a dificuldade de mobilizar as pessoas em torno do que será discutido no evento – “não é a mesma reação de quando se fala do direito à saúde, por exemplo”. O desafio, portanto, é conscientizar as pessoas sobre a importância do direito à informação para a construção da plena cidadania.

Sobre a possibilidade cada vez mais nítida de que se radicalize o controle da vida dos cidadãos por meio do uso das tecnologias, Olinca acredita que caberá à própria sociedade defender seu direito à intimidade e os seus valores. “Tudo isso é muito grave”, afirma. “E acho que a resposta terá de vir de nós mesmos”.

Rets - No balanço feito pelo Caucus da América Latina e do Caribe ao final da reunião intersessional de Paris, o sentimento expresso foi de frustração. Que expectativas foram frustradas?

Olinca Marino - O sentimento de frustração ocorreu porque o documento que havíamos produzido antes, na PrepCom 2, acabou sendo muito modificado, e isso não beneficia a sociedade. Nós pensávamos que poderia ter havido um avanço maior em relação ao conteúdo que estava sendo trabalhado. Com surpresa, percebemos que tanto as contribuições dos governos quanto as observações das empresas ganharam muita força, ao contrário das da sociedade civil. E isso tem a ver com o direito à informação, fundamentalmente, tem a ver com um comportamento de equilíbrio de gênero, tem a ver com o conhecimento de domínio público, enfim, com os aspectos que temos procurado inserir nas discussões que envolvem a Cúpula e que vemos que no documento não aparecem. E é muito clara a desvinculação que se tem da sociedade civil. No processo estão sendo consideradas, principalmente, as contribuições que chegam dos governos, e os governos têm muito boas relações, em alguns casos, com o setor empresarial. E nós, representantes da sociedade civil, não estamos conseguindo interferir no processo de produção, discussão e redação desse documento.

Rets - E é possível falar em avanços obtidos nesse encontro?

Olinca Marino - Houve avanço no sentido de que já conhecemos o processo, sabemos como funciona, nos conhecemos e temos mais canais de comunicação entre governos e organizações, já identificamos os atores. Então pode ser que o terreno, por ser mais conhecido, torne-se mais fácil e consigamos obter melhores resultados – se bem que não conseguimos nesse último encontro.

Rets - Algumas contribuições da sociedade civil aparecem no texto, mas em aberto, para serem discutidas na PrepCom 3. Não foram consideradas, sequer debatidas ainda. Quais as perspectivas de que essa discussão se faça de fato?

Olinca Marino - Na PrepCom 2 se deu a discussão sobre em que parte do documento deveriam aparecer as contribuições da sociedade civil, e essa discussão tomou muitas horas. Havia governos que apoiavam a idéia de essas contribuições fazerem parte de um único documento, de modo que as pessoas, ao abrirem o documento, pudessem ver todas as contribuições – tanto dos governos quanto da sociedade civil – e sobre essa base pudessem fazer novas contribuições. Ao final, a posição vencedora foi a de que o documento teria uma primeira parte com as contribuições dos governos e uma segunda com as da sociedade civil. A conseqüência disso é que os governos, a julgar pelos resultados, trabalharam fundamentalmente com a primeira parte e todas as modificações foram feitas sobre essa base – e, em alguns casos, com base nas boas relações de alguns governos com a sociedade civil. Tivemos, então, um documento geral com as contribuições dos governos e, num documento anexo, as contribuições da sociedade civil. Simplesmente não há discussão sobre essas posições, o que é uma subtração. Nesse processo, a participação da sociedade civil está muito cerceada. Ainda que exista alguma aceitação, alguma abertura por parte dos governos ao afirmarem que essa participação é bem-vinda, em termos concretos ela não se dá para nada.

Rets - Mas qual a expectativa para o futuro?

Olinca Marino - Minha opinião é que o processo que tivemos na PrepCom 2 vai continuar, com as contribuições da sociedade civil mantidas em uma posição muito secundária. Mas nesta intersessional houve uma reunião entre o bureau da sociedade civil e o bureau dos governos onde ocorreu de fato um intercâmbio. Porque o que se vinha notando até o momento é que os governos tinham suas discussões nos espaços de trabalho, ao passo que a sociedade civil se reservava apenas um espaço, ou espaços muito específicos, no início e no final das sessões, sem que houvesse qualquer vinculação com as discussões que vinham sendo travadas. Então, nessa reunião, propusemos que se garantisse um espaço para que as organizações da sociedade civil pudessem emitir sua opinião sobre cada capítulo. Dessa forma, teríamos mais possibilidades de que os governos pudessem conhecer as posições da sociedade civil sobre cada tema.

Rets - E a proposta foi aceita?

Olinca Marino - O bureau dos governos e, de forma concreta, o senhor Samassekou [Adama Samassekou, presidente da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação] disseram que vão examinar essa proposta ao determinarem as formas de trabalho para a PrepCom 3, mas esperavam adotar alguma medida que pudesse induzir essa participação. Essa é uma linguagem bem conhecida pelas organizações ao longo de todo o processo. Eles sempre diziam “estamos abertos”, mas não explicavam como. Por isso me parece importante que, agora que foi feita essa proposta mais específica, nós, da sociedade civil, possamos defendê-la para a PrepCom 3.

Rets - De onde vêm as resistências à participação da sociedade civil?

Olinca Marino - Parece-me que as nossas propostas são contrárias a alguns interesses, sobretudo os de monopolizar a tecnologia, concentrar a riqueza do conhecimento, interesses que têm a ver com a governabilidade da Internet. E a sociedade civil, ao pleitear transparência, democratização, justiça, não é bem-vinda por alguns governos que mantêm vínculos com algumas empresas, por exemplo.

Rets - Como vocês têm acompanhado a participação dos governos da América Latina e do Caribe nesse processo preparatório para a Cúpula?

Olinca Marino - Há dois governos que vêm apresentando contribuições fundamentais e uma participação ativa: o brasileiro e o mexicano. As propostas do governo brasileiro são muito boas, há um entrosamento com os anseios da sociedade civil. Em relação às propostas mexicanas também encontramos algumas semelhanças com as nossas, ainda que não haja acordo em relação ao direito à comunicação. Estes são os governos que têm participado mais ativamente. Todavia não conseguimos identificar um conjunto de posições dos governos da América Latina e do Caribe, apenas posicionamentos isolados.

Rets - E quanto à participação das organizações da sociedade civil?

Olinca Marino - Creio que tem havido muito interesse de organizações vinculadas a projetos de comunicação e informação. Elas estão cada vez mais interessadas em pelo menos se informar e pouco a pouco participar. Por outro lado, creio que nos falta muito em relação a outros setores. Há poucas organizações de direitos humanos, de gênero, direitos sexuais, de jovens... creio que temos de, aos poucos, estimular essa participação.

Rets - A participação das organizações, que iniciou-se de forma tímida há cerca de um ano, vem aumentando gradativamente. Você acredita que, para a segunda etapa da Cúpula - a ser realizada em Tunis, em 2005 - haverá esse amadurecimento, uma compreensão da importância desse debate por uma parcela maior da sociedade?

Olinca Marino - Creio que, necessariamente, as organizações da sociedade civil terão um papel mais ativo. A segunda fase corresponde à implementação dos planos de ação que serão aprovados em dezembro [na primeira etapa da Cúpula, em Paris] e começarão a ser implementados no próximo ano. Evidentemente esses planos de ação têm a ver com os diversos aspectos do desenvolvimento, com as Metas do Milênio, com as ações contra a pobreza, e não somente com a comunicação e a informação. Nesse sentido, necessariamente, as organizações terão de participar pois será uma ação muito mais vinculada ao que fazem no dia-a-dia.

Rets - Informação, cada vez mais, representa poder. Hoje a tecnologia torna possível monitorar a vida dos cidadãos – com rastreamento de celulares, uso de cartões bancários, câmeras de controle de tráfego, cookies e programas spyware. Além disso, o 11 de setembro tornou-se um pretexto para que se ampliasse o controle sobre a Internet e se restringissem algumas liberdades civis. De que forma se pode evitar a construção de uma sociedade "orwelliana"?

Olinca Marino - Você se refere a uma radicalização do controle dos cidadãos por meio da tecnologia, prioritariamente. É o cenário que vemos agora. Dentro do processo da Cúpula, essa percepção fica ainda mais evidente. Acho que a resposta terá de vir de nós mesmos. Nós, cidadãos e cidadãs, teremos de defender nosso direito à intimidade, nossas culturas tradicionais. E, no caso da América Latina, a implementação de programas nacionais que impliquem o uso das tecnologias de informação e comunicação como concebidas nas discussões dos governos.

Destruir as tradições culturais, o que é tradicional, a tradição oral de nossos povos, tudo isso é muito grave. E creio que a defesa terá de sair somente da própria sociedade. Por isso acreditamos que é importante tomarmos a Cúpula como um espaço de trabalho que possa estimular esse debate entre os representantes da sociedade civil, estimular a reflexão, a crítica, o estudo, de modo a termos mais elementos para que se possa analisar o que queremos fazer com as tecnologias, até onde queremos ir com elas, se elas estão beneficiando a vida cotidiana, ou se estão resultando em maior controle, em maior dificuldade para nos movermos livremente.

Agora, aqui me parece importante mencionar uma dificuldade, pois a tecnologia ainda é um tema aparentemente distante para muita gente. Não provoca a mesma reação de quando se fala do direito à saúde, por exemplo. As pessoas a relacionam às máquinas, e há quem jamais tenha tocado em um teclado, pessoas que não têm telefone. Evidentemente, falar da possibilidade de uma conexão entre duas pessoas através de uma linha telefônica e um computador é uma coisa abstrata para muita gente. São, portanto, aspectos que precisam ser tratados sob outra perspectiva.

Algo que também me parece muito distante é que o próprio direito à comunicação, que está sendo discutido na Cúpula, é um conceito que devemos defender do ponto de vista legal. E um terreno novo até mesmo para as organizações que estão trabalhando com informação e tecnologia.

Rets - Apesar de sua importância, a Cúpula, assim como os temas que ela envolve, não tem obtido a repercussão necessária. Muitas pessoas ignoram o evento ou não sabem sequer o que é uma Sociedade da Informação. No Brasil, essa indiferença é muito visível. O mesmo se passa em outros países da América Latina?

Olinca Marino - Creio que até mesmo alguns membros das equipes de trabalho dos governos desconhecem o que significa a Cúpula. A informação deveria ser muito mais divulgada, as pessoas não sabem o que se passa, desconhecem sua responsabilidade com o que será discutido. Não quero dizer que em outros países a Cúpula é um tema de todos os dias, mas creio que existe muito mais informação em outras partes do mundo. Na América Latina não temos essa possibilidade, não encontramos informação nos noticiários de televisão ou rádio. Por isso considero importante comentar e introduzir o tema, mas não focalizando a Cúpula e sim a questão da tecnologia, o direito à informação e sua relação com a cidadania.

*A palavra caucus designa um grupo de pessoas reunidas em torno de interesses comuns. Nos processos das conferências das Nações Unidas, os caucus são grupos de negociação estratégica.


Maria Eduarda Mattar, Graciela Selaimen e Fausto Rêgo

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