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Pacto sem dor

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets






No dia 26 de junho, foi assinado o Protocolo de Combate à Tortura, cuja função é efetivar o cumprimento do Pacto Nacional Contra a Tortura, firmado em 2000. A data não foi escolhida à toa: é o Dia Mundial de Combate à Tortura. A intenção com a assinatura do protocolo é referendar o Pacto, renovar os compromissos estabelecidos e mostrar o posicionamento do novo governo federal, que ainda não havia se pronunciado sobre o tema.

Participaram da solenidade e assinaram o protocolo o ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda; o Procurador Geral da República, Geraldo Brindeiro; o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Rubens Approbato; e o presidente do STJ, Nilson Naves. A novidade foi a possibilidade de os representantes de organizações da sociedade civil presentes à cerimônia também assinarem o documento - o que foi feito pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat) e o Centro de Justiça Global. É certo que o ato teve caráter principalmente simbólico, uma vez que é através das instâncias oficiais que se pode fazer um combate efetivo à tortura, mas demonstra de modo prático a participação da sociedade civil, já prevista no próprio protocolo e no Pacto. 

O Pacto Nacional Contra a Tortura

O pacto foi firmado em 2000, quando uma combinação de acontecimentos levou o governo a elaborá-lo. Na época, o relator especial da ONU para a área de tortura, Nigel Rodley, visitou o Brasil e viu que essa prática ainda era corriqueira no país. Em novembro daquele ano aconteceu o Seminário Nacional contra a Tortura, que contou com a efetiva presença dos três poderes: Executivo, Judiciário e Legislativo. Neste evento foi firmado o Pacto Nacional contra a Tortura, com a participação do Estado e da sociedade civil organizada.

O “acordo”, no entanto, só teve desdobramentos práticos no ano seguinte, quando foi lançada a Campanha Nacional Permanente de Combate à Tortura (CNPCT), em outubro de 2001. Sua abrangência, no entanto, tem sido limitada. A sua principal expressão é o SOS-Tortura, um serviço telefônico de denúncias operado pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Entretanto, não se constatam ações práticas que mudem de fato a realidade. Tampouco se tem visto a Lei de Tortura, de 1997, sendo devidamente aplicada nos tribunais. Como se costuma dizer no Brasil, é mais uma lei que não pegou.

A tortura no país existe desde quando os colonizadores portugueses dominavam os nativos. Foi bastante utilizada durante os anos de ditadura militar e, apesar de oculta, continua presente. Especialmente nas práticas policiais dentro de penitenciárias e casas de custódia – o que é ainda mais condenável, de acordo com a lei, que pune mais severamente os torturadores quando estes são agentes públicos. Para esses a pena é aumentada em de um sexto até um terço, assim como para aqueles que torturam crianças, gestantes, pessoas com deficiência ou adolescentes e para aqueles que cometem tortura mediante seqüestro.

Apesar da lei que caracteriza e pune os crimes de tortura, além das denúncias feitas por pessoas isoladas, por organizações e até pelo Ministério Público, a prática continua corrente. Atualmente as denúncias comunicadas e devidamente registradas, recebidas através do SOS-Tortura, somam cerca de 2.500. Fora os muitos outros casos que não vêm à tona por medo, vergonha ou pelo simples fato de a pessoa não poder fazê-lo, seja porque morreu, seja porque está presa.

“Tudo fica muito no plano das boas intenções. Não vemos muitas mudanças ou ações práticas”, diz Elizabeth Silveira e Silva, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) do Rio de Janeiro. “O Ministério Público tem competência para investigar e agir; o Estado tem as instâncias para poder fazer o controle, o monitoramento da tortura, que também não é feito; existem as Ouvidorias, que não funcionam adequadamente etc. Já existe toda uma estrutura que não é acionada direito. Ou seja, existe um monte de intenções”, afirma Elizabeth, que se engajou nessa luta depois que seu irmão, Luis René Silveira e Silva, se tornou um dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia.

Para mudar essa realidade e não fazer com que mais uma vez as coisas fiquem apenas no plano das intenções, é necessário que se efetive tanto a lei sobre o tema, já existente, quanto os pactos e protocolos firmados ou por firmar. E, em termos de sensibilização, de experiência para tratar com o tema e para identificar práticas positivas para acabar com a tortura, as organizações da sociedade civil se mostram essenciais na medida em que conhecem o assunto e algumas se dedicam especificamente a isso. E são essenciais também para concretizarem aquilo que está previsto no protocolo e que começou a ser posto em prática na cerimônia da sua assinatura: que o combate à tortura deve ser uma ação ampla e completa, com a participação de toda a sociedade.

Possibilidades de participação

“A sociedade civil organizada conseguiu a confiança do cidadão. As pessoas procuram primeiro a sociedade civil e se abrem mais facilmente. Além disso, as ONGs se especializaram - e isso gerou competência, sensibilidade, capacidade para lidar com a questão”, diz a coordenadora do MNDH Rosiana Queiroz. Nesse sentido, o aproveitamento desse conhecimento construído com a atuação direcionada pode e deve ser feito para contribuir com conceitos e boas práticas para o fim dos atos de tortura.

Para Sandra Carvalho, diretora de Pesquisa e Comunicação do Centro de Justiça Global, as organizações têm experiências diferenciadas para aportar nesse combate. “As organizações têm muito a contribuir. A Justiça Global, por exemplo, vem tendo uma atuação no sentido de cobrar do país o cumprimento dos acordos internacionais dos quais ele é signatário, das obrigações internacionais que o Brasil tem. Com isso, podemos contribuir justamente indicando caminhos para o país cumprir todas essas obrigações”.

Segundo Sandra, no momento da assinatura do protocolo ficou decidido que as ONGs vão atuar em parceria com o governo, principalmente na capacitação dos agentes públicos e dos operadores de Justiça – além do óbvio monitoramento, o que já vêm fazendo. “Esse será o ponto forte da atuação da sociedade civil organizada nesse primeiro momento”, afirma a diretora da Justiça Global. Isabel Peres, coordenadora geral da Acat, concorda que o treinamento de profissionais é uma das principais frentes em que as organizações podem ajudar e acredita que “a parceria é fundamental. Se não houver trabalho conjunto com as ONGs, esse protocolo não vai dizer nada. Precisamos formar pessoas nas áreas médica, do direito, social, psicológica etc.”.

Para começar a mudar a realidade - que faz com que a Acat, por exemplo, receba pelo menos uma nova denúncia por dia no estado de São Paulo – é preciso vencer obstáculos como corporativismo nas polícias, uma cultura que considera que criminoso não tem direitos humanos, pouca informação disponível para os órgãos responsáveis por investigar e punir, pouco esclarecimento sobre o que é de fato um ato de tortura, entre muitos outros. Portanto, para haver um real enfrentamento, é preciso - sabendo de todas as dificuldades e conhecendo onde e de que forma o problema se dá – atacar pontos específicos e prioritários.

Para Sandra, o que deveria ser feito imediatamente para começar a mudar esta triste realidade é o “Estado criar mecanismos para identificação e punição dos atos, tendo a consciência de que a maior parte dos crimes de tortura é cometida dentro das prisões”. (segundo dados do SOS-Tortura, 77,95% das denúncias recebidas são de atos cometidos dentro dos estabelecimentos prisionais). Além disso, na sua opinião, seria preciso que os estabelecimentos penitenciários abrissem mais espaço para que fossem avaliadas as práticas dentro deles. “A entrada de membros dos chamados Conselhos da Comunidade em presídios está prevista na Lei de Execução Penal. No entanto, há cidades que ainda nem constituíram seus conselhos”, diz.

Elizabeth, do GTNM, acredita que a estrutura já existente para combater o crime deve ser corretamente acionada e usada. “O governo tem que dar uma resposta mais concreta. Tem que pegar um caso exemplar, como o do cozinheiro Antônio Gonçalves de Abreu [que foi encontrado morto dentro do prédio da Polícia Federal, no centro do Rio de Janeiro], investigar bem e punir de fato”, diz a presidente da instituição.

Saber para combater

Outro empecilho apontado para o combate eficaz à prática é a falta de esclarecimento sobre o crime. Está na Lei de Tortura: constitui crime de tortura “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; em razão de discriminação racial ou religiosa” e “submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.

Percebe-se, então, que a tortura tem muito a ver com o predomínio da força do torturador sobre o torturado e com uma certa dominação oculta nesta relação. Tendo essa perspectiva, pode-se ver que a tortura é mais comum do que se imagina. Nas prisões essa relação pode ser bem identificada. No entanto, na vida cotidiana, é mais difícil. Um pai ou uma babá, por exemplo, que agrida uma criança com a intenção de obter algum resultado pode estar, sim, cometendo uma tortura. E isso nem sempre é visto. Muitas são as vezes em que os crimes são classificados de forma diferente, como violência familiar. Também podem ser – o que não exclui o fato de que se trata de tortura.

“Nas prisões, é mais fácil perceber: existem os espancamentos, os afogamentos, o pau-de-arara. Fora das prisões, é difícil as pessoas identificarem. Costumam ver mais como violência doméstica”, atesta Isabel. Por isso, o esclarecimento da sociedade sobre o que se encaixa em crime de tortura também é necessário. Assim como os agentes públicos e de Justiça – que precisam de treinamento em direitos humanos e em uma cultura de paz -, as pessoas também precisam aprender que atos podem ou não ser considerados tortura. “A capacitação e sensibilização da sociedade é ainda mais difícil”, ressalta a coordenadora da Acat.

Todas estas contribuições conceituais ou práticas da sociedade civil não terão servido, no entanto, se não houver um único fator, determinante: compromisso pela mudança nos órgãos do Estado. O motivo é simples: as ONGs não têm o poder de mudar as estruturas. Podem capacitar, conscientizar, monitorar, denunciar, cobrar. Mas, enquanto os órgãos competentes – como as polícias, o Ministério Público, o Judiciário – não se aperfeiçoarem para que seus mecanismos coíbam ou punam corretamente essa forma de violência, pouca coisa vai mudar.

É nisso que acredita Sandra Carvalho, que se diz animada com o protocolo, mas pondera: “Eu acho um passo adequado no sentido de acabar com a tortura. Agora é saber se vai ser viabilizado. Precisa-se de recursos financeiros e humanos para operar esta mudança". Na mesma linha de raciocínio, Elizabeth também defende que o Estado deve se comprometer. “Ele precisa colocar como uma prioridade, estabelecer de fato o compromisso. Porque se não, por mais que nós façamos, não conseguiremos mudar. É preciso que se mude muita coisa por dentro, nas prisões, na cultura dos agentes, dos policiais. Tem que ter vontade política”.

Porque, no que depender das ONGs, vontade já existe.


Maria Eduarda Mattar

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