Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Alexandre Tahira | ![]() |
Na semana de 4 a 8 de agosto, Angra dos Reis, no litoral sul do estado do Rio de Janeiro, terá um atrativo a mais, além de praias e ilhas: ativistas de organizações de diversas naturezas farão na cidade manifestações contra a retomada do programa nuclear brasileiro e a decisão de início de construção da usina termonuclear Angra III. Mais do que um problema ambiental, os ativistas defendem que o assunto transpassa diversos aspectos sociais e que envolve uma questão-chave: a capacidade e a possibilidade de a sociedade escolher se deseja ou não a construção da usina - e se quer ou não ser "acionista" da possível nova construção.
Resumindo a história do investimento brasileiro em energia nuclear, o programa nacional para criação deste tipo de energia começou na década de 70. A construção de Angra I (657 MW) teve início em 1972. Depois de idas e vindas, somente a partir de 1995 a usina passou a ter operação mais regular. Em junho de 1975, foi assinado com a República Federal da Alemanha o Acordo de Cooperação para o Uso Pacífico da Energia Nuclear. Em julho do mesmo ano, foi adquirida a tecnologia para as usinas de Angra II e Angra III. A construção de Angra II (1.309 MW) teve início em 1976 e a previsão inicial para a usina entrar em operação era 1983. Mas a operação do reator ocorreu somente em julho de 2000, produzindo cerca de 20% a 25% do que poderia. Só em novembro daquele ano passou a operar com potência média de 1.300 MW.
Durante todas estas etapas, a energia nuclear nunca deixou de receber críticas de diversos setores, incluindo ONGs e acadêmicos. "Usamos quatro adjetivos para definir a energia nuclear: ela é insegura, cara, suja e ultrapassada", diz Sérgio Dialetachi, coordenador da campanha contra energia nuclear do Greenpeace. Um dos aspectos mais criticados diz respeito aos riscos ambientais e para a saúde humana. Anomalias congênitas em pessoas e animais e desequilíbrio de ecossistemas são alguns. A tese de vazamento ganha força ao se observar o lugar escolhido para a construção da primeira usina, Angra I: a praia de Itaorna, palavra que em tupi significa "terra podre" e denominação ressaltada para se demonstrarem as grandes possibilidades de acidentes devido ao local onde está localizada a usina.
Existem também as críticas aos altos custos para manutenção das usinas e do programa nuclear brasileiro. Estima-se que a Eletronuclear - empresa estatal que toca o programa e administra as usinas - demande, por dia, R$ 1 milhão simplesmente para se manter. Parece realmente não valer muito a pena, considerando a fraca contribuição da energia nuclear para a capacidade total brasileira de geração e para o consumo geral no país: Angra I tem capacidade para produzir pouco mais de 600 MW, enquanto Angra II, aproximadamente 1.300 MW (Angra III deve produzir esta mesma quantidade). O país consome 300 GWh, em dados atualizados em 1998, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
O próprio Atlas de Energia Elétrica do Brasil, da Aneel, reconhece que a energia tem suas inseguranças: "o futuro da energia nuclear não é muito promissor, em virtude dos problemas de segurança e dos altos custos de disposição dos rejeitos nucleares. Com exceção de pouquíssimos países, dentre os quais a França e o Japão, a opinião pública internacional tem sido sistematicamente contrária à geração termonuclear de energia elétrica. Nos últimos anos, o número de centrais nucleares em operação tem sido radicalmente reduzido, sendo comparável àquele dos anos 1960, quando teve início o desenvolvimento da indústria de energia nuclear". Em outro trecho, o documento revela: "além de uma remota - mas não desprezível - possibilidade de contaminação do solo, do ar e da água por radionuclídeos, o aquecimento das águas do corpo receptor pela descarga de efluentes representa um risco para o ambiente local".
Tendo em mente estes e outros contras e levadas especialmente pelo fato de o presidente da Eletrobrás, Luis Pinguelli Rosa, ter anunciado no início de julho que o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) estaria adotando medidas para a retomada do programa nuclear brasileiro, organizações como o Greenpeace, a Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (Sapê), a Coalizão Rios Vivos e a Fundação SOS Mata Atlântica vão realizar ou apoiar diversas atividades na semana de 4 a 10, em um conjunto de eventos que está sendo chamado de "Hiroshima Nunca Mais", junto com a campanha "Angra 3 Não!". A primeira das atividades será o evento Energia para um Brasil Sustentável: seminário sobre o uso de fontes renováveis na matriz energética brasileira, realizado pela Sapê com apoio da Fundação Heinrich Böll, nos próximos dias 7, 8 e 9 de agosto. Acontecerão também uma manifestação e um show musical de protesto.
A principal ênfase das ações é alertar a população para um fato que, esperam os organizadores, poderá sensibilizar os cidadãos, a partir do momento em que perceberem que, mesmo inadvertidamente, estarão contribuindo para a construção da usina. "Com uma decisão tomada recentemente, 0,3% das contas de luz de todos os consumidores das regiões Sul e Sudeste irão para a construção de Angra III. Esse reajuste anunciado do subsídio a ser pago pela energia nuclear transforma todos os cidadãos dessas regiões em ‘acionistas’ da futura usina. O pior: o governo não consultou ninguém. Ou seja, as pessoas precisam saber com o que estão contribuindo", defende Dialetachi.
Além disso, pretende-se também chamar a atenção dos moradores não só de Angra, mas de toda a região do entorno do município e das cidades situadas em um raio de até 100 km em linha reta, sobre o risco que também estão correndo, caso aconteça algum acidente na cidade. "Cem quilômetros é um raio considerado aceitável, realista, por estudiosos do assunto, no caso de um acidente grave. Assim, cerca de 150 cidades e 17 milhões de pessoas estariam diretamente ameaçadas, incluindo os maiores centros urbanos brasileiros, São Paulo e Rio de Janeiro, toda a região litorânea do sul fluminense, o litoral norte paulista, a região serrana do Rio, Minas Gerais, cidades turísticas como Caxambu (MG) e Aparecida do Norte (SP), Itatiaia e outros municípios do estado de São Paulo, entre outros pontos. E, por ser localizada justamente na região mais populosa, mais industrializada e mais urbanizada do país, se ocorrer algum acidente, imagine o caos que poderia causar um simples alarme, gerando tentativa de êxodo das pessoas, o pânico", explica Dialetachi.
Ivan Marcelo Neves, coordenador-geral da Sapê, questiona um outro ponto sobre a construção de Angra III. Ele acredita que a energia lá gerada - que para abastecimento de cidades não seria tão significativa - vai, na verdade, alimentar o submarino nuclear brasileiro que estaria em construção em São Paulo. "A questão bélica está por trás. O submarino nuclear está sendo construído em Aramar, SP, e é para alimentá-lo que a energia gerada em Angra III será utilizada", defende, sem titubear.
Ele afirma que em Angra a população já apóia massivamente a Sapê, que desde 1982 se manifesta contra a presença das usinas na cidade. Apesar deste apoio dos moradores, no entanto, as administrações municipais não se mostram contra as usinas. Um motivo para isso seria o cumprimento de contratos e acordos já afirmados desde a década de 70. Porém um outro motivo forte para esta falta de ação contra o programa nuclear poderiam ser os royalties que o município recebe. O que, para Neves, também deve ser questionado: "Esse pagamento não se justifica. Além disso, o dinheiro não entra no orçamento. Só pode servir para lavagem, para caixa 2. O dinheiro não vai para a solução de questões ambientais em Angra".
Já o engenheiro elétrico Carlos Augusto Kirchner, do Ilumina - organização da sociedade civil que reúne uma série de engenheiros e técnicos que estudam o sistema elétrico brasileiro -, acredita que deve haver cautela e análise sobre a possibilidade de se construir ou não a terceira usina. "Acho que não se pode ser basicamente a favor ou contrário. Tem que se analisar os prós e contras. Existe a necessidade de expandir e diversificar o sistema. Nesse contexto, deve-se analisar o que pode ficar pronto em um prazo mais curto. De certa forma, a construção de Angra III pode ser favorecida pelo fato de que parte dos investimentos favoráveis já foi realizada (para construção de Angra II)", afirma ele, reconhecendo, no entanto, que o fato de se tratar de energia nuclear assusta as pessoas e que, de fato, este tipo de energia envolve um risco grande. Quanto ao argumento da rapidez com que a nova usina poderia ficar pronta, Dialetachi rebate lembrando que Angra II, que tem estrutura e tecnologia igual, demorou 17 anos a mais do que estava previsto para ser construída. Além disso, despendeu U$ 20 bilhões enquanto o orçamento inicial era de U$ 2,5 bilhões.
Outro ponto que concorre para as críticas à retomada do programa nuclear brasileiro é o fato de este tipo de energia já ser considerado obsoleto internacionalmente, inclusive na Alemanha, país que nos vendeu a tecnologia para construção de Angras I e II. "A própria Siemens [empresa alemã de quem o Brasil adquiriu a tecnologia das usinas de Angra II e Angra III] já está proibida de vender essa tecnologia na Alemanha", lembra Dialetachi.
Em que pesem todos os prós e contras, não se pode ignorar que, de fato, o incremento de geração de energia trazido por Angra III não será nem um pouco significativo. Seria muito próximo do que é gerado em Angra II, cerca de 1.300 MW, em um país cuja geração atual é de mais de 84 mil MW, sendo que nos próximos anos mais 37 mil MW deverão ser adicionados a este montante, vindos de empreendimentos atualmente em construção (segundo a Aneel). Só a usina hidrelétrica de Belo Monte, a ser construída, deverá produzir 10 mil MW.
Neste contexto, o que organizações e ativistas contrários ao programa nuclear defendem é o uso de energias limpas e renováveis. "Se investíssemos os R$ 2,5 bilhões do orçamento oficial de Angra III na geração de energia eólica (por ventos) poderíamos produzir 29 vezes o montante que será gerado naquela usina", afirma Dialetachi. De fato, em um país como o Brasil, que dispõe de mais de 8 mil km de costa, onde venta quase o ano inteiro e o clima é tropical, com a predominância do sol em grande parte do país durante a maior parte do ano, as condições para a utlização das energias eólica e solar são as mais favoráveis. Fora a possibilidade de uso de biomassa - resíduos sólidos urbanos, animais, vegetais, industriais e florestais que podem ser utilizados para geração de energia.
Kirchner lembra, porém, que o uso destas energias pode ser financeiramente inviável, no momento. "Elas ainda não são usadas em grande escala. E, por isso, sua geração fica cara, o que teria que ser repassado para o consumidor". No entanto, para que fiquem mais baratas, o que se precisa fazer é simplesmente empregá-las cada vez mais. E, para isso, dispõe-se, por exemplo, da experiência e do know-how do Ceará e de professores da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), no caso da energia eólica.
Por que a insistência, então, para que a usina seja construída? Além da possibilidade de geração de energia nuclear para uso da Marinha, como lembrou Neves, existe um outro motivo bastante considerado pelos críticos da construção de Angra III: o lobby forte de construtoras. Angra II dá mostras da quantidade de dinheiro que obras como essa envolvem. Foram gastos U$ 20 bilhões na sua construção. Apesar de a terceira usina estar orçada em U$ 2,5 bi - o que já é, por si só, uma quantia considerável -, sempre existe a possibilidade de as obras atrasarem - o que tem sido regra no caso das usinas nucleares brasileiras. Com isso, são mais R$ despendidos na construção da usina, com as construtoras recebendo mais dinheiro.
Um dos argumentos usados para justificar a construção - a geração de postos de trabalho - é rapidamente quebrado e rebatido: "Os empregos gerados duram quatro ou cinco anos e são exclusivamente na construção civil, que é uma mão-de-obra barata", defende Neves, da Sapê. "Fala-se em 6 mil empregos, mas isso é só na área de construção, ou seja, é passageiro. Depois, a usina emprega somente cerca de 150 pessoas", diz Dialetachi.
É para todas estas questões - ambientais, de saúde, de economia, de lobby, bélicas - que as organizações que vão se encontrar na semana que vem, em Angra dos Reis, pretendem chamar atenção. Mais do que tocar os governantes, a intenção é sensibilizar a sociedade para esse assunto, que pode estourar a qualquer momento, e espalhar reflexão e consciência sobre riscos e verdades do sistema energético brasileiro.
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