Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Termo novo, cunhado a partir de estudos e debates travados desde a década de 70, "desertificação" significa "degradação do solo em áreas áridas, semi-áridas e subúmidas secas, resultante de vários fatores, entre eles mudanças climáticas e atividade humana". Essa definição - hoje em dia aceita e aplicada por ONGs, programas governamentais e acadêmicos que lidam com o tema - foi sacramentada na Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação, de 1994. E é seguindo tal definição que os processos de desertificação devem ser encarados e combatidos. É importante fazer esta distinção, pois o termo deve ser aplicado somente aos processos que ocorrem nas áreas "áridas, semi-áridas e subúmidas secas" - o que, no Brasil, significa dizer que ele só pode ocorrer no norte e no nordeste. Isso deixa de fora, portanto, as áreas ao sul do país que também estão sofrendo forte processo de degradação, com causas semelhantes.
O assunto, no Brasil, é tão árido quanto as áreas afetadas. Primeiro porque só foi encarado como um problema recentemente, a partir do início da década de 90 - antes se acreditava que desertificação era um problema majoritariamente do continente africano. No entanto, até países pequenos e de clima tropical ou temperado, como a Argentina, sofrem com o fenômeno. No país, por ocorrer mais no nordeste, a desertificação é muitas vezes confundida com seca. Esta, porém, é um fenômeno climático independente do Homem. Também não tem a ver com a expansão de desertos já existentes. Desertificação tem a ver com degradação de solos antes saudáveis e decorre da conjunção de mudanças climáticas e, principalmente, ação humana. Para comprovar isso, basta notar que o processo tem se acentuado desde a década de 70, quando o uso do solo se intensificou, sobretudo com grandes aplicações de capital, vindas em grande parte de financiamentos de órgãos governamentais, como a antiga Sudene - Superintendência de Desenvolvimento Econômico do Nordeste. Esses grandes aportes de capital provocaram também uma agricultura largamente irrigada, porém sem o adequado manejo.
A irrigação não-apropriada, por sinal, é uma das principais causas de desertificação, por causar salinização do solo: a água é trazida de fora, muitas vezes, em grandes quantidades, dissolvendo os sais presentes no solo e fazendo com que eles venham para a superfície; devido ao clima seco, a água facilmente evapora e resta somente o sal. "Não é nem um processo de irrigação, é de 'molhação'. É muita quantidade de água, não há um controle, uma gestão correta", afirma Dário Nunes dos Santos, responsável pela área de Clima e Água no IRPAA - Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada.
Outro fator de desertificação provocado pelo Homem é a monocultura. O uso da terra exaustivamente para cultivar um único tipo de alimento sabidamente estraga o solo, que perde nutrientes e fertilidade. Isto e o grande desmatamento de vegetação nativa - para promover pastos e plantações - estão entre os principais responsáveis pela taxa de decréscimo médio anual de 1,8% na produtividade agrícola das regiões afetadas no país. Estas, por sua vez, somam mais de 665 mil km, atingindo 42% da população nordestina e mais de 10% da população brasileira, segundo dados da Fundação Esquel. Ou seja, são mais de 15 milhões de pessoas vivendo em áreas cuja situação é considerada moderada, grave ou muito grave. No mundo, as regiões semi-áridas - portanto, suscetíveis ao processo - representam quase um terço da superfície do planeta e abrigam mais de 1 bilhão de pessoas. Atualmente, calcula-se que 100 países já apresentem terras em processo de desertificação.
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Voltando ao Brasil, quatro localidades são consideradas Núcleos de Desertificação: Gilboés (Piauí), Irauçuba (Ceará), Seridó (entre Rio Grande do Norte e Paraíba) e Cabrobó (Pernambuco). Apesar de o semi-árido brasileiro ser o mais chuvoso do mundo - com índices pluviométricos anuais de 800 mm, em média - essa vantagem não é bem aproveitada para evitar erosão do solo, irrigação inadequada, falta d'água etc. Pela má gestão de recursos, hídricos ou não, o crescimento das áreas desertificadas é 3% anuais, segundo Alexandre Araújo, secretário-executivo da Aspan - Associação Pernambucana de Proteção à Natureza.
A Aspan é membro da ASA - Articulação no Semi-Árido Brasileiro, iniciativa que reúne cerca de 800 organizações de 12 estados para buscarem soluções e empreenderem atividades para que a população consiga não reverter ou parar as más condições impostas pelo clima, mas conviver com as circunstâncias provocadas pelo tempo seco e árido. Atualmente, a organização tem um Grupo de Trabalho (GT) específico sobre desertificação, criado há pouco tempo a fim de incorporar ainda mais nas práticas das organizações noções sobre desertificação - intimamente ligada aos problemas enfrentados por moradores da Caatinga, pequenos agricultores etc. A Aspan está na coordenação deste GT.
Muito trabalho para os Grupos
O GT de Desertificação da ASA talvez seja a única iniciativa articulada e de porte da sociedade civil organizada para tratar do tema, no Brasil. Internacionalmente existe a RIOD - Rede Internacional de ONGs sobre a Desertificação, que abrange organizações não-governamentais e comunidades locais, que pretende fortalecer a sociedade civil na participação em todos os níveis da implementação da Convenção da ONU. Para todas estas iniciativas ainda resta muito trabalho para conseguirem conscientizar comunidades, grandes proprietários de terra e órgãos governamentais que financiam projetos que podem contribuir para o aprofundamento do fenômeno. "Para termos bons resultados, precisamos convencer os parceiros no problema que eles são parceiros no problema e, portanto, devem ser parceiros na solução", diz Araújo.
Todos estes atores - e, também, boa parte da sociedade que ignora as dimensões da desertificação - precisarão conhecer as conseqüências do fenômeno em diversas áreas. Além dos efeitos drásticos na natureza, que podem ser facilmente observados nos solos secos e erodidos, nos rios desaparecendo ou na vegetação devastada, existem também aqueles de forte cunho econômico-social. Por isso, está diretamente associada a pobreza, ao comprometer o bem-estar humano de diversas formas. As questões social e econômica, incluindo a segurança alimentar, as migrações e a estabilidade política estão estreitamente ligadas à degradação da terra.
Ao se danificar o meio ambiente, ecossistemas se desequilibram. Além disso, o solo que decai em produtividade dá cada vez menos alimentos para o agricultor consumir ou vender, que, por sua vez, empobrece. Para tentar estancar esse processo, ele explora ainda mais sua terra ou cultiva em outras, podendo gastar e aprofundar a desertificação, ou então, em busca de sobrevivência, migra com sua família para centros urbanos, onde provavelmente engrossarão as filas de excluídos, desempregados e famintos. Ou, aqueles que ficaram no semi-árido, sem água suficiente para plantar corretamente, irão tentar explorar mais as fontes que ainda sobram - se é que sobram - ou buscarão fazer buracos nos rios para tentar achar a água que existe no subsolo. Esses quadros se repetem cada vez mais. São intrincados e têm conseqüências até longe das áreas em processo de desertificação, como, por exemplo, nas cidades para as quais migram as famílias desiludidas com a vida no semi-árido.
Lançar luz sobre essas características e, principalmente, sobre formas de solucionar problemas relacionados é uma das tarefas necessárias para deter o processo de desertificação no país. Segundo o secretário-executivo da Aspan, sensibilizar as comunidades de pequenos agricultores é uma das partes importantes e também mais fáceis. "Os moradores dessas regiões ameaçadas apresentam níveis de informação variados, porém, o nível de sensibilização e compreensão do problema e das possibilidades de solução é imediato, na medida em que traduzem na prática na mesma hora aquilo que se está conversando com eles", diz Araújo.
Outra tarefa importante é convencer os grandes proprietários de terra que a monocultura não é uma boa opção para a saúde do solo; que as técnicas de irrigação devem ser apropriadas, ao invés de simplesmente trazerem água em abundância e que retirar espécies nativas para plantio de outras, estranhas ao ecossistema em questão, pode não ser a melhor alternativa nem para o solo nem para a planta. Talvez essa seja uma das missões mais difíceis, uma vez que convencer uma pessoa de que aquilo que ela vem fazendo há anos não é o mais correto e que ela deve mudar práticas e hábitos de plantio desperta, no mínimo, desconfiança. Porém, são justamente estes grandes proprietários que devem ser conscientizados, pois é nas suas terras e plantações que acontece a grande maioria das práticas equivocadas, em grande escala. "É fundamental a conscientização dos grandes, pois aí está o grosso do assoreamento, do desmatamento etc.", diz Naidison Baptista, do MOC - Movimento de Organização Comunitária, sediado na Bahia.
Outro passo importante a ser dado é a conscientização dentro de órgãos governamentais, sobre que programas apoiar para não contribuirem com o aprofundamento do fenômeno. Araújo, da Aspan, mostra-se otimista quanto a esta etapa, principalmente em se tratando de órgãos estatais no nordeste. "De modo empírico, pode-se dizer que há sensibilização de alguns destes órgãos, como o Banco do Nordeste e a Codevasf - Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, que têm participado de reuniões, ativamente, demonstrando um interesse que parece ser sincero, real", diz Araújo.
Além desta forma de interação com o governo, há também o recém-criado Grupo de Trabalho sobre Desertificação, ligado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), tendo surgido no final de junho. Sua missão é elaborar o PAN - Plano de Ação Nacional, previsto na Convenção da ONU sobre o tema, e que todos os países signatários devem elaborar, em parceria com a sociedade civil, como prevê o documento das Nações Unidas. Assim, membros de ONGs já estão envolvidos no GT do governo, principalmente representantes da ASA, que congrega uma série de entidades que têm trabalhos relacionados ao tema. Segundo a portaria de criação do GT, o grupo tem 18 meses para apresentar um plano de trabalho.
Para Araújo, essa participação da sociedade civil organizada é importante, "pois esta é a chance de produzir algo, sair do plano das discussões e implementar nacionalmente ações; é a chance de contribuir e efetivamente implantar o que foi decidido". Segundo ele, as dificuldades e possíveis soluções de combate à desertificação experimentadas pelas organizações estão sendo levadas para as discussões no GT do governo. "O debate vai ser intensificado e veremos o impacto delas na elaboração do PAN", diz. Ele acredita também que a cooperação é em mão dupla, "pois não só as organizações podem participar de um processo importante e decisivo, mas também o governo pode ter informações melhores, mais reais e práticas, fornecidas pelas organizações que lidam diretamente com o tema".
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Uma das iniciativas que certamente será apresentada é o já bastante conhecido Programa 1 Milhão de Cisternas, implementado pelas diversas instituições ligadas à ASA. O projeto visa justamente o que seu nome diz: implementar um milhão de cisternas, reservatórios que permitem o armazenamento de água da chuva, nas casas dos moradores da região semi-árida. Os dispositivos ficam ao lado das moradias e vão recebendo água no período das chuvas (verão), com auxílio inclusive dos telhados das casas. Segundo cálculos do P1MC, nos períodos mais secos do ano, 96% das famílias poderiam dispor de pelo menos 16 mil litros de água coletados na época de chuvas. "A construção de cisternas é um elemento fundamental para poder armazenar água, e elas armazenam na linha do consumo humano", afirma Naidison, do MOC.
Araújo ressalta algumas das vantagens de um programa de construção de cisternas: "em primeiro lugar, dificilmente falta água; segundo, a mulher que andava quilômetros durante horas para buscar água pode contribuir na roça, ajudando a produzir alimentos e a aumentar a renda da família; a criança, que acompanhava a mãe, pode ir para a escola aprender conhecimentos que muitas vezes faltam aos pais e, assim, talvez desempenhar de maneira mais eficiente as mesmas atividades no futuro; os moradores não cavam os rios ressecados em busca de água do subsolo, diminuindo mais um dos fatores de desertificação; diminui-se a pressão sobre os recursos naturais; e por aí vai", enumera.
Sociedade civil presente em momentos decisivos
Mais iniciativas como essa poderão ser incentivadas com os R$ 100 mil recentemente anunciados pelo Secretário de Recursos Hídricos do MMA, João Bosco Senra, destinados a combater a desertificação. Segundo ele afirmou à Rets, o Governo Federal também "pretende estabelecer parcerias com os estados para elaborar diagnósticos mais apurados sobre o fenômeno". A forma como a verba será aplicada provavelmente ficará decidida no processo de elaboração do PAN. Mais um motivo para as organizações não-governamentais participarem ativamente de todo esse processo.
No entanto, a articulação de organizações não só brasileiras, mas de todo o mundo se mostra especialmente importante nesse momento de preparação para a 6ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação, que acontecerá em Cuba, de 25 de agosto a 5 de setembro. O evento irá rever e acompanhar a implementação da convenção nos diversos países signatários. João Bosco Senra destaca que, no evento, o governo pretende pleitear recursos do GEF, o Fundo Mundial do Meio Ambiente, para prevenir o aumento do fenômeno no país. "O GEF tende a apoiar programas de blocos. Por isso, estamos elaborando em conjunto com Paraguai, Argentina e Uruguai um plano para combater a desertificação nos países do Cone Sul", diz o Secretário, que foi eleito recentemente Coordenador Regional da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação para os países do Cone Sul. Ele lembra ainda que o Brasil, junto com diversos países latino-americanos, vai levar para a Conferência algumas propostas discutidas regionalmente, como, por exemplo, a "forte associação da desertificação à pobreza".
Em momentos como esse, decisivo para o rumo que o combate à desertificação tomará nos próximos anos, as ONGs - que lidam e enfrentam o problema na prática, atuando junto a comunidades afetadas e elaborando soluções simples - não podem ficar de fora. Por causa disso, e como o envolvimento da sociedade civil é encorajado desde o início do processo que levou à assinatura da Convenção, a ASA vai tentar pôr em prática esta orientação e comparecer ao evento em Cuba. A participação ainda não está confirmada, mas Araújo defende que, mais uma vez, a presença da sociedade civil é de extrema importância. "Nossa participação em Cuba seria interessantíssima não só para darmos continuidade à articulação nesse âmbito, uma vez que participamos das 3ª, 4ª e 5ª conferências; não só para aprendermos com Cuba - um país que tem conseguido combater o fenômeno e que, por ser pobre, emprega soluções de baixo custo, exatamente o que precisamos aqui -; mas também para estarmos envolvidos em momentos cruciais dessa luta que não começou ontem e não vai acabar amanhã", resume.
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