Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
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Nunca uma banda levou tão a sério a idéia de que a música deve ter uma boa vibração. Contando com sete pessoas com deficiência auditiva entre seus 12 integrantes, o projeto Surdodum, de Brasília, faz apresentações musicais há oito anos, apesar de todas as dificuldades financeiras. Eles aprenderam a tocar percussão seguindo as batidas do coração e a cantar procurando emoção na letra. Hoje formam a única banda de surdos do Brasil.
Quem montou o grupo foi a fonoaudióloga Ana Lúcia Soares. Quando criança, tinha em sua sala de aula uma amiga surda e via a dificuldade pela qual a colega passava para acompanhar as aulas. “Até ditado a professora fazia”, lembra. Tempos depois, logo após sua formatura, trabalhou durante um ano no Centro Educacional de Audição e Linguagem Ludovico Paroni (Ceal), escola pública que complementa a educação de crianças e adolescentes com deficiência auditiva. Lá aprendeu a Libras (Língua Brasileira de Sinais) e começou o trabalho musical com os alunos. Em 1995, foi aprovada em concurso público e efetivada no CIEE (Centro Integrado de Educação Especial, vinculado à Secretaria de Educação do Distrito Federal), onde formou a banda com nove componentes, todos surdos – menos ela.
O nome foi dado por Clésio da Cruz, um dos primeiros alunos e o único remanescente da primeira formação. Ao assistir a apresentação do grupo baiano Olodum naquele ano, ele gostou tanto da vibração sonora e da performance que quis fazer algo semelhante. Entrou na aula de música e sugeriu o nome, uma analogia aos percussivos baianos. De lá para cá o grupo cresceu, tendo hoje 25 jovens com algum grau de surdez participando das oficinas. Desses, os sete mais adiantados no aprendizado fazem shows ao lado de músicos ouvintes. Todos os alunos estão matriculados na rede pública do Distrito Federal. Freqüentam aulas normais pela manhã e de tarde participam de atividades do CIEE, entre elas as do Surdodum. Estar na escola e tirar boas notas são os únicos requisitos pedidos.
O desafio era grande. Como fazer pessoas que não escutam tocarem instrumentos harmonicamente? A solução foi trabalhar primeiro a expressão corporal dos integrantes. Foram muitas aulas de ritmo, onde eles aprendiam os ritmos de acordo com batidas no corpo e com os batimentos cardíacos. Para mostrar o que seria um som acelerado, Ana Lúcia mandava todos correrem pela sala. Depois, era só colocar a mão no coração. A professora usava também gráficos para mostrar velocidade e intensidade das batidas do timbau, bumbo e tambor. “Eles passam a sentir a batida no corpo e assim conhecem as músicas. Por serem surdos, seus outros sentidos são mais aguçados”, diz a professora.
“Utilizamos chamadas como em qualquer bateria ou grupo percussivo. A diferença é que desenvolvemos sinais próprios”, explica Reinaldo Braz, mestre de bateria ouvinte e voluntário do grupo há oito anos. Segundo ele, os alunos são esforçados e por isso aprendem rápido as lições. Tanto que, no último ensaio, Reinaldo chegou com uma música nova, cheia de contratempos e acabou surpreso. “Pensei que iam demorar alguns dias para pegar o ritmo, mas foi preciso apenas 30 minutos. Não é porque são meus alunos, mas a qualidade é muito grande”, orgulha-se.
Vozes
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A percussão é complementada ainda por instrumentos de cordas e vocais. São três cantoras, sendo duas com deficiência auditiva. A terceira é Ana Lúcia. Os ensaios são complicados, pois, além de cantar, precisam passar a música por meio da língua de sinais para o público. Um outro empecilho é a falta de resposta sentida pelas cantoras. Enquanto os percussionistas sentem a vibração dos instrumentos no corpo, as cantoras praticamente não sabem como estão cantando.
Por isso é necessário muito treino. Elas lêem o texto com Ana Lúcia, que a interpreta em Libras a fim de passar as idéias e emoção da composição. Em seguida treina as passagens graves e agudas por meio de um gráfico com linhas altas e baixas. Os ensaios por vezes duram horas, pois é difícil transmitir todas as sensações que as músicas encerram. Mas, tanto esforço traz resultados a todos. “A fala delas melhorou muito desde que começaram”, diz Ana Lúcia, que se orgulha dos elogios recebidos por sua voz e pela das companheiras de palco.
Uma das cantoras é Luciana Delforge, de 26 anos e desde 1995 no grupo. Surda profunda no ouvido direito desde nascença, ela escuta pelo esquerdo, onde a deficiência é severa, porém não total. Para facilitar a tarefa, utiliza um aparelho auditivo. Diz ser cantora desde criança e amar essa função na banda. “Quando era pequena sempre ouvia música da Xuxa e treinava ouvir e cantar. Assim me acostumei. Mas às vezes sinto dificuldade não só pelo vocal, mas também para pegar o ritmo, a melodia e também se a voz deve ser fina ou grossa. Resolvo ao sentir a vibração pelo corpo e pelo pé também”, afirma a cantora.
Segundo Ana Lúcia, os maiores ganhos dos alunos e músicos do projeto são o aumento da auto-estima e a contribuição para terminar a escola no tempo certo, o que é difícil para quem tem deficiência auditiva - e, por isso, sofre com a falta de preparo de professores para passar os ensinamentos de forma adequada.
O restante do grupo de apresentação é composto pelo guitarrista Arnaldo Barros, que tem deficiência física e anda em cadeiras de rodas. Seu trabalho, assim como o do baixista Alexandre Macarrão e do tecladista Augusto Souza, é voluntário.
Músicas e apresentações
Desde quando foi formado, o Surdodum faz apresentações. No começo, a platéia era formada principalmente por parentes dos músicos, mas hoje os familiares e amigos são minoria. A agenda, apesar de não estar lotada, já registra parcerias com bandas famosas como o Cidade Negra, feita em 2000. A reação do público também mudou. “Hoje são elogiados não por serem um grupo de surdos, mas pela qualidade das músicas”, comemora Ana Lúcia.
Apesar do nome lembrar o grupo baiano, eles não fazem “axé music”. Ressaltam não ter nada contra o estilo, mas acham outros ritmos mais adequados. No repertório estão clássicos da MPB e composições próprias. No segundo e último CD de demonstração, “Transcendemos”, das quatro músicas, duas foram feitas por integrantes do grupo. Todas, em algum momento, fazem referência a dificuldades, que, nas apresentações do projeto, acabam representando os obstáculos vencidos pelos seus integrantes. Entre elas, Ana Lúcia lembra “Azul da cor do mar”, onde Tim Maia cantava “se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho tanto pra contar, dizer que aprendi”.
Mas nem todos os ouvem. Apesar do projeto ser vinculado à Secretaria de Educação do Distrito Federal, os recursos são muito poucos. Os integrantes do grupo não recebem nenhum tipo de auxílio. Ao contrário, gastam tempo e dinheiro para manter o Surdodum e seus tambores. Mas contam com a compreensão de patrões para, às vezes, ensaiarem durante seis horas em dias de semana.
No momento, porém, a situação parece um pouco mais preocupante pela oportunidade que pode escapar se ninguém os ajudar. Recentemente o Surdodum recebeu convite para participar do I Encontro Luso-Brasileiro de Jovens Músicos Surdos, que acontece na cidade de Guarda, em Portugal, de 9 a 15 de outubro. Lá, eles fariam oficinas percussivas e shows. Ana Lúcia seria conferencista. Já conseguiram translados, alimentação e hospedagem, mas até agora nada de passagens aéreas, orçadas em R$ 32 mil.
Enquanto a banda faz barulho para conseguir os meios de ir ao encontro, as autoridades e empresários permanecem surdos aos pedidos de patrocínio.
Quem quiser entrar em contato com o Surdodum, basta enviar mensagem para alsoares@globo.com ou visitar a página deles (ver link ao lado).
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