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O não-governamental em questão - um estudo sobre o universo Abong

Autor original: Marcelo Medeiros

Seção original: Artigos de opinião

Tatiana Dahmer Pereira*

Estudar o setor não-governamental no Brasil é versar sobre um universo tão complexo quanto pouco investigado. Embora tenha havido, nos últimos anos, um considerável aumento de estudos e publicações em torno da temática, o não-governamental no Brasil ainda permanece como um setor identificado por características e práticas difusas, pouco claras e, muitas vezes, sem transparência.

Além da crescente presença de entidades não-governamentais na mídia, uma questão particular me chamou a atenção. Formada em Serviço Social e trabalhando há alguns anos em uma entidade desse universo, a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional - FASE, muito me intrigava a diversidade e a precária precisão, por parte da opinião pública, de definições sobre o que são ou fazem essas entidades. Através do mestrado em Planejamento Urbano e Regional, do IPPUR/UFRJ, abriu-se a possibilidade concreta de realizar estudos e buscar algumas respostas para as inquietações no campo da formação profissional.

A partir do trabalho na FASE, da curiosidade das pessoas sobre a natureza do trabalho da entidade e da consulta a publicações, a pesquisas e a trabalhos sobre o universo não-governamental, ficou claro que essa denominação não apresentava, por si, qualquer definição sobre a(s) identidade(s) dessas organizações. Buscando fazer uma reflexão sobre a natureza dessas entidades e dos embates em torno da construção simbólica e política do significado sobre ser não-governamental, uma das etapas mais difíceis é construir critérios analíticos claros que permitiam distanciamento crítico do objeto, considerando que trabalho e encontro-me totalmente envolvida nesse meio. Assim, compartilho identificação com algumas visões e concepções sobre o que é ser não-governamental.

Portanto, tenho consciência de que não falo sobre esse universo, mas procuro registrar reflexões que contribuam para o debate nessa temática. Sabendo da riqueza e complexidade desse universo, não temos a pretensão de esgotar esse tema. Algumas questões emergentes neste trabalho merecem maior reflexão e aprofundamento – no entanto, caberiam várias dissertações em relação a conceitos e temas presentes neste estudo.

Ao entrar em contato com a Associação Brasileira de ONGs - ABONG, reconhecemos uma clara estratégia de qualificação do conceito de não-governamental para além da afirmação de que são entidades sem fins lucrativos. O que parecia um horizonte para auxiliar no entendimento sobre as ONGs, transforma-se em uma série de conceitos, matrizes e diferenças. A partir de então, passamos a conhecer o que são essas entidades que cada vez mais ganham espaço na mídia e projeção social e têm gerado, com isso, polêmicas quanto aos seus papéis – tanto na relação com a sociedade, de uma forma geral, como com o Estado.

A partir de documentos da ABONG, como estatutos, atas, publicações, jornais e boletins, e com base no debate teórico mais amplo sobre ONGs, o universo ABONG assume o centro do estudo que originou este artigo, tendo como principal objetivo identificar a existência de matrizes heterogêneas sobre o que é ser não-governamental em seu interior.

Tradicionalmente, a legislação dessas entidades regula as organizações não-governamentais no Brasil e as insere de modo indiferenciado junto a outras organizações bem distintas entre si – desde entidades filantrópicas até organizações desportivas. O conceito não-governamental é, antes de tudo, um conceito socialmente construído, o qual consolida-se no Brasil, na década de 1970 e quais elementos o diferenciam da qualificação reducionista de sem fins lucrativos. Nesse universo, a ABONG configura-se como um agente de construção do não-governamental e ajuda a construir uma idéia que diferencia as ONGs do campo mais amplo das Organizações Sem Fins Lucrativos - OSFL, tendo impactos sobre a construção do conceito junto à opinião pública e sobre a legislação vigente.

Dentro da própria ABONG existem matrizes diferentes. A existência de diferenças nesse campo normalmente não é muito explicitada, o que acaba tornando o assunto algo delicado de se abordar. Primeiro, porque há produção e sistematização clara de uma vertente, hegemônica desde o nascimento da ABONG. Segundo, porque, independentemente dessa hegemonia, convive com essa leitura uma outra compreensão sobre o papel das ONGs e sua relação com as políticas públicas e com o Estado.

No entanto, esse segundo campo, o qual nos esforçamos por delimitar, embora representado por entidades mais antigas, não apresenta um debate mais sistemático em torno dos conceitos, visando a um preenchimento do conceito não-governamental. Podemos supor que não há confronto direto, mas divergências expressas em textos, debates e publicações quanto às leituras sobre o papel e o lugar social das ONGs. E uma das hipóteses que justifica esse não-enfrentamento pode ter a ver com um pacto de consenso, visando à estabilidade desse campo da ABONG, e com o aprendizado de uma forma diferente de convivência democrática.

A ABONG aparece, portanto, como um campo político, marcado por embates e contradições, aglutinando forças heterogêneas em seu interior. Cabe-nos refletir até que ponto essa entidade, estratégica na construção do conceito não-governamental, pactua e busca a construção do consenso com a existência de vertentes diferentes em seu interior.

Debater as entidades desse campo é importante para tornar cada vez mais claros os perfis e a natureza de atores que aparentam ser uma novidade no campo político institucional – mas que têm matrizes e origens na história da construção da vida cívica e da democracia no país. Portanto, a reflexão sobre a importância desses atores como fortalecedores de segmentos da sociedade civil organizada precisa ser considerada sob a ótica de seu compromisso com o aprofundamento da democracia, visando à afirmação de valores de justiça e igualdade social.

Com base no estudo empreendido para o livro "O Não-governamental em questão - um estudo sobre o universo ABONG", pude averiguar que a ABONG, ao conformar-se como um campo político dentro do amplo espaço social das OSFL, abriga em seu interior diferentes visões quanto ao que é ser não-governamental. Ao menos duas clivagens foram identificadas por nós: a que afirma pertencerem as ONGs a um terceiro setor e a que identificamos como entidades do campo da educação popular. Embora abriguem concepções diferentes em seu universo, tais diferenças não chegam a constituir blocos – há uma pactuação em torno do reconhecimento da ABONG enquanto esfera legítima de representação das ONGs e há o princípio da convivência com a pluralidade.

Podemos perceber que a ABONG tem como associadas ONGs: com estratégica e crescente importância na construção de projetos políticos mais amplos da sociedade e que interferem parcialmente em questões sociopolíticas nacionais (e mesmo internacionais). Tem como associadas também ONGs cuja ação no campo do fortalecimento da democracia e da construção da cidadania centra-se em práticas educativas e formativas e informativas, orientadas, portanto, para a construção e a reprodução de valores ético-políticos, atuando intensamente com a dimensão do simbólico. Há também aquelas com ações coletivas e estratégias articuladas entre seus agentes e os segmentos sociais organizados ou mesmo os setores do Estado, mas com forte estrutura e acúmulo de relações políticas e temáticas centradas em agentes individuais.

Ainda que não representem expressamente os interesses de – nem falem por – determinados segmentos sociais, as ações das ONGs contribuem sempre para o fortalecimento de interesses e o auxílio na construção política de um determinado projeto de sociedade, gerenciando muitas vezes contradições quanto aos próprios interesses do seu universo de agentes – financiadores, fundadores, dirigentes, militantes etc. –, o que também acaba por conferir à entidade um perfil singular.

Portanto, as ONGs do universo ABONG atuam, segundo os princípios de formação da ABONG, tanto a partir do fomento do fortalecimento do capital político existente quanto com a sua reprodução. Na realidade, estamos nos referindo à ABONG enquanto produto – e processo – de construção de uma linguagem própria à consolidação do universo das ONGs para sua afirmação tanto no campo das OSFL e das ONGs não-associadas quanto em relação à sociedade, ao Estado Nacional e aos outros países, às agências financiadoras e mesmo às ONGs internacionais.

A importância de apresentar-se como referência ao Estado, à sociedade civil e às entidades internacionais – outras ONGs, redes de ONGs e entidades de cooperação internacional – está também inscrita na estratégia da ABONG como forma de afirmação da hegemonia desse campo e da luta pelo preenchimento do conceito de não-governamental. Tal objetivo realiza-se por meio da visibilidade das ONGs do universo ABONG não só no cenário nacional quanto no internacional.


*Tatiana Dahmer Pereira é assistente social e educadora social da Fase - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional. Este artigo foi produzido a partir do livro "O não-governamental em questão - um estudo sobre o universo Abong", resultante de sua tese de mestrado, no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur).





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