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A cidadania no centro da discussão sobre as cidades

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





A sociedade civil organizada tem nas conferências das cidades uma possibilidade efetiva de participação na formulação de políticas públicas urbanas.


Participar ativamente da elaboração e da proposta de políticas públicas é sempre um dos principais interesses de organizações da sociedade civil. Influenciar as medidas que serão postas em prática, levar um olhar diferenciado aos tomadores de decisão, fazer parte de processos que dizem respeito ao conjunto da sociedade. Tudo isso é de grande valor para ONGs e movimentos sociais. E é justamente a chance de exercer essas possibilidades que proporciona o processo das Conferências das Cidades.

A 1ª Conferência Nacional das Cidades foi convocada por decreto, em 22 de maio, pela Presidência da República. Segundo a convocação, a conferência deveria ser levada adiante e coordenada pelo Ministério das Cidades. O evento nacional ocorrerá de 23 a 26 de outubro de 2003, porém, no processo preparatório, estava prevista uma série de conferências – municipais e estaduais – para discutir localmente os problemas e as demandas de uma determinada cidade ou estado. É aí que começam as possibilidades de participação da sociedade civil organizada nas decisões de políticas públicas para os municípios.

O lema "Cidade para Todos" e o tema "Construindo uma Política Democrática e Integrada para as Cidades" foram escolhidos para nortear o processo, que terá na pauta formas de implementação mais efetiva do Estatuto da Cidade, a lei 10.257/01, e culminará com a constituição do Conselho Nacional das Cidades, com representantes de diferentes setores. Quatro eixos principais foram escolhidos para ajudar a organizar as discussões: habitação, saneamento ambiental, regularização fundiária e transporte e mobilidade urbana. Textos-base para subsidiar os debates foram produzidos e disponibilizados no site do Ministério das Cidades.

As conferências municipais e estaduais deveriam ser convocadas pelos executivos de cada município ou estado, depois de constituída uma comissão para organizar o evento. Uma vez que o lema prevê uma “cidade para todos”, a participação da sociedade civil nas discussões é mais do que indicada: é necessária. Portanto o envolvimento das ONGs nos debates já era um ponto certo desde que a Conferência das Cidades foi convocada; as organizações precisavam apenas ficar atentas, para não perderem prazos e poderem participar efetivamente.

No entanto uma diretriz diferente da Conferência demonstra mais claramente a importância da sociedade civil organizada em todo esse processo: caso as administrações públicas não convocassem a conferência em seu estado ou cidade, um grupo de ONGs poderia fazê-lo. “Em muitas cidades, os executivos municipais não estavam providenciando a conferência. A sociedade civil organizada, portanto, começou a se movimentar para organizar o evento. Percebendo isso, muitas prefeituras se mexeram para realizar a conferência”, conta Íria Charão, coordenadora nacional da Conferência.

Grazia de Grazia, do Fórum Nacional de Reforma Urbana, vê com muito bons olhos a iniciativa de abrir tal espaço para as organizações da sociedade civil. “Está provocando uma efervescência incrível. Muitas conferências estão ficando lotadas, como a de ontem, para toda a região da Baixada Fluminense, que ocorreu em uma auditório lotado de uma universidade em Nova Iguaçu”, relata ela, com a voz rouca em função da participação na conferência.

De acordo com o cronograma da Conferência Nacional das Cidades, a etapa municipal deveria estar concluída até agosto. Portanto todas as conferências municipais que foram convocadas já estarão acontecendo até o final deste mês. A partir daí, será realizada a etapa estadual.

Na pauta

Tomando como base os quatro eixos principais – habitação, saneamento ambiental, regularização fundiária e trânsito e mobilidade urbana –, as conferências abordarão problemas graves, provocados pelo inchaço das cidades, pelo mau planejamento do crescimento e pelas desigualdades sociais, que são, ao mesmo tempo, causa e conseqüência de mazelas nos municípios. Municípios estes que abrigam a grande maioria da população do país: 82% dos brasileiros e brasileiras vivem nas cidades (de acordo com o IBGE). Ou seja: negligenciar os vários problemas que existem ou podem vir a existir nas áreas urbanas é ignorar suas conseqüências diretas na qualidade de vida da maior parte das pessoas.

A questão da habitação, por exemplo, recentemente ganhou enorme atenção da opinião pública, quando um terreno da fabricante de carros Volkswagen, em São Bernardo do Campo, foi invadido por integrantes do Movimento dos Sem-Teto. O crescimento em progressão geométrica do número de barracas e o fato de as famílias estarem no terreno de uma grande empresa contribuíram para que a mídia desse uma atenção especial ao episódio. Atenção essa que, em vez de colocar na agenda nacional a discussão sobre alguns dos problemas e algumas soluções possíveis, acabou marcada por uma fatalidade: a morte do repórter fotográfico Luis Antônio da Costa.

Episódios como a invasão dos sem-teto não deveriam provocar mortes, mas reflexões, por exemplo, sobre o déficit habitacional no Brasil, que hoje é de mais de 6,5 milhões de moradias, o que equivale a 14,8% do total dos domicílios particulares permanentes, segundo o Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (Dhesc) 2003. Ou seja: falta construir no país 6,5 milhões de lugares para as pessoas morarem. A estimativa é de que esta situação atinja cerca de 20 milhões de brasileiros. “Esta é uma das questões mais latentes”, diz Íria, “e está muito relacionada também com a regularização fundiária: aquelas áreas onde as pessoas já moram, porém não têm a propriedade”. Talvez com os debates e os resultados da Conferência Nacional das Cidades possa-se diminuir a quantidade de municípios que possuem habitação em área de risco, cuja média brasileira, atualmente, é de 28,75%, segundo o Sistema Nacional de Indicadores – SNIU.

Íria afirma também que o tema tem que ser analisado na sua amplitude, considerando-se todos os aspectos relacionados. “O problema do inchaço das cidades tem muito a ver com o êxodo rural, que não é de hoje, nem começou em janeiro. É um processo que vem acontecendo há décadas. As pessoas que saem do campo em busca de alguma oportunidade nas cidades são as mais afetadas pelo déficit habitacional. Ou seja, a questão da habitação, assim como os outros temas que estão em pauta nas conferências, tem que ser pensada de modo integrado, amplo”.

Outro problema que tem muitos aspectos a serem analisados é o saneamento ambiental. São cerca de 60 milhões de brasileiros (dados do Ministério das Cidades) que vivem nas cidades e não dispõem de coleta de esgoto. Além disso, há também a deficiência no tratamento do esgoto que é coletado: quase 75% é despejado in natura nos cursos d’água. A importância de encontrar soluções ou alternativas para essas situações pode ser compreendida quando se vê as conseqüências que elas trazem: uma das mais importantes é a má qualidade da água, podendo causar diversos tipos de doenças, o que, por conseguinte, resulta em mais custos com a saúde da população, que muitas vezes não sabe dos riscos que está correndo – e por aí vai.

Transporte e mobilidade urbana também configuram um dos eixos propostos para as conferências. A razão é simples: a desigualdade nessa área também é muito grande e os municípios pouco fazem para controlar a disparidade significativa que existe entre o número de transportes públicos e privados. Segundo informações do próprio Ministério das Cidades, dos 30 milhões de veículos que compõem a frota rodoviária nacional, 25 milhões são automóveis e apenas 115 mil são ônibus. Fica claro, então, que também no uso do solo urbano há desigualdade. Além de provocar congestionamentos e perda de tempo nos deslocamentos, a prioridade do transporte individual em detrimento do coletivo é forte responsável pelo aumento da poluição atmosférica.

Papel propositivo e continuidade

É sobre estes e outros eixos – dependendo das especificidades locais – que a sociedade civil organizada tem o direito e o dever de expor seu olhar no processo das conferências. E para isso, ao que tudo indica, já estão se mobilizando. É o que testemunha Elizabeth Grimberg, coordenadora da área de Ambiente Urbano do Instituto Pólis e integrante da comissão organizadora da conferência municipal de São Paulo. “Pelo que temos podido ver por aqui, os movimentos populares estão muito mobilizados. Eles correm atrás da máquina pública o tempo todo, procuram participar”, diz Elizabeth.

Segundo Íria Charão, da coordenação nacional das Conferências, o papel da participação da sociedade civil tem sido extremamente ativo: “O envolvimento tem sido grande e de caráter propositivo. Mais do que demandar, simplesmente, a sociedade civil organizada tem buscado propor, apresentar alternativas e pontos de vista”, ressalta Íria.

Tanto que, nas cidades em que o executivo municipal dificulta de alguma forma a participação das organizações, elas denunciam. Segundo Elizabeth, que além de fazer parte da comissão organizadora da conferência municipal de São Paulo também participou de algumas reuniões da comissão que organiza a conferência no estado, “tivemos algumas denúncias a esse respeito, de entidades que não foram incluídas no processo, como prevê o regimento nacional. A tendência é que, nos casos em que se confirmar a exclusão proposital de ONGs e movimentos sociais, as conferências realizadas naquela localidade não sejam validadas”, revela.

Mas, ao que tudo indica, esta não tem sido e não será a regra, nas etapas que ainda acontecerão. As regras de realização das conferências prevêem que, nas conferências municipais, serão eleitos delegados para participarem das etapas estaduais; nestas, serão eleitos delegados para participarem da Conferência nacional, em outubro. No entanto, tanto nas municipais quanto nas estaduais, as entidades podem participar entrando em contato com a comissão organizadora estadual – que está sempre em contato com as comissões de cada cidade.

Por que a importância de as organizações estarem sempre atentas e articuladas para os eventos? Porque a contribuição da sociedade civil organizada é mais do que importante, é vital, pois muitas vezes os movimentos e ONGs, por seu caráter de nascerem a partir da mobilização da sociedade a respeito de algum assunto, são os que mais facilmente enxergam o que esta mesma sociedade precisa e propõe. Além disso, seu envolvimento é importante para influenciarem em decisões diretamente relacionadas com o futuro da vida nas cidades.

Outro motivo importante para as organizações estarem participando ativamente das conferências é que deste processo resultará o Conselho Nacional das Cidades, o fórum onde as discussões travadas intensamente nestes meses de conferências serão mantidas e continuamente recicladas. Será uma espécie de conferência permanente. O formato que ele terá vai ser decidido durante a Conferência Nacional, em outubro. “Se essa instância for deliberativa em vez de só consultiva, melhor, pois as políticas serão implementadas tendo sido analisadas por representantes de diferentes setores”, diz Elizabeth, do Pólis.

E, para garantir o lugar e o peso das instituições não-governamentais no Conselho – o futuro das discussões sobre os problemas urbanos –, agora é a hora de as organizações se mobilizarem e reivindicarem mais uma vez seu espaço. Como afirma Grazia de Grazia, “as cidades têm que ser pensadas a partir da sua base, da sua variedade. Elas têm que ser planejadas para o crescimento, para o seu futuro”. Se o futuro das cidades é o mesmo de 82% da sociedade brasileira, nada mais justo que ela faça parte desse planejamento.

Para as organizações interessadas em saber se as conferências em suas cidades ainda vão acontecer, o contato pode ser feito com a comissão organizadora estadual. Para aquelas que desejam saber as formas de participação nas etapas estaduais, o contato deve ser feito com a mesma comissão. Os contatos das comissões de cada estado podem ser obtidos junto à coordenação nacional da Conferência das Cidades, através dos telefones (61) 411-4641 e (61) 411-4797.

Maria Eduarda Mattar

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