Autor original: Fausto Rêgo
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Iniciativa do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, o projeto “Reordenamento de Abrigos” teve concluída sua primeira fase. No dia 15 de agosto, foram divulgados os primeiros resultados de um levantamento que envolveu 69 instituições que atendem crianças e adolescentes no município. Esse trabalho foi desenvolvido por duas organizações da sociedade civil: a Associação Brasileira Terra dos Homens trabalhou com os abrigos voltados principalmente para crianças de até 11 anos, ao passo que a Excola ficou responsável, principalmente, pelos que atendem adolescentes.
Embora seja comum entre a população a idéia de que os jovens abrigados estariam lá, em sua maioria, por serem vítimas de violência doméstica, a pesquisa mostra que não é bem assim. Na verdade, é a falta de políticas públicas e de uma rede eficaz de serviços a principal motivação para que meninos e meninas cheguem a essas instituições. Dos 1.981 jovens envolvidos no estudo, 39,75% estão nos abrigos por causa da carência material de suas famílias e 11,26% por falta de creches, escolas e programas sociais que pudessem complementar o período escolar enquanto os pais trabalham. Os casos de violência doméstica somam 28,64%.
O estudo ainda não está concluído, o que vai ser feito numa segunda etapa do projeto. Por ora, foram divulgados apenas alguns resultados preliminares, disponíveis no site da Terra dos Homens – veja a área de Links Relacionados, ao lado. Em entrevista concedida à Rets, a diretora executiva da organização, Cláudia Cabral, comenta o que foi inicialmente observado nesse trabalho e confirma que o levantamento ainda será aprofundado, com vistas a identificar os abrigos aos quais será necessário dedicar mais atenção para que se adaptem às exigências do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A idéia é fazer um mapeamento completo, determinando o perfil dos jovens abrigados, a razão do seu ingresso na instituição, os casos de reintegração às famílias e de retorno às instituições e o acompanhamento da situação desses jovens realizado por cada abrigo.
Cláudia conta que houve, desde a implantação do ECA, um avanço no atendimento às crianças e aos adolescentes abrigados. Mas revela preocupação quanto ao aumento da violência. “Não adianta nada se a criança sai do abrigo com muito mais risco do que há 20, 30 anos. A questão da violência vem se agravando de tal forma que, se toda a sociedade não se envolver, não tiver uma participação mais política e crítica, as grades e os muros serão cada vez maiores”.
Rets - Segundo a pesquisa, 77% das crianças e dos adolescentes abrigados mantêm vínculos familiares. É possível explicar o que caracteriza esse vínculo.
Cláudia Cabral – O vínculo familiar ocorre quando existe o contato com a família. Mas às vezes há um período de ausência que pode girar em torno de até três meses. A criança, no entanto, tem como referencial aquele pai, aquela mãe, aquele tio que vem visitá-la. Então ela tem aquele grupo familiar como referência. E quando essa criança vai para casa ou o parente vem visitá-la, a gente tem que tentar entender o que está acontecendo. Existe uma necessidade de compreender aquela situação e investir para melhorar a qualidade do vínculo ou, se possível, promover junto à família o retorno da criança.
Rets - O Estatuto da Criança e do Adolescente determina que os abrigos devem preservar os vínculos familiares. No entanto há episódios de abandono pela própria família e de rejeição da criança ao convívio familiar. O que acontece nesses casos?
Cláudia Cabral – Há casos de crianças com família e sem vínculo. Às vezes o juiz da Infância e Juventude percebe que a família não está visitando. Se o oficial de justiça visita o pai, a mãe ou a pessoa responsável e esse pai ou essa mãe diz que gosta da criança, promete que vai visitar, fica difícil constatar uma situação de abandono. Então existe uma dificuldade muito grande para o profissional ter uma real dimensão desse vínculo e determinar se deve procurar outras pessoas ou indicar que a criança deveria ser disponibilizada para adoção. E há casos também em que o juiz já estudou a situação e decidiu destituir o poder familiar. Aqui no Rio de Janeiro a gente tem contado com uma certa agilidade na condução desses processos por parte do Dr. Siro Darlan [juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro]. Com isso, o número de crianças aguardando adoção é hoje muito pequeno. Tanto que encontramos um percentual muito reduzido de crianças de 0 a 1 ano nos abrigos. Já é um indício muito claro da agilidade desses processos.
Rets - Foi surpreendente constatar que a principal razão para esses jovens estarem em abrigos não é a violência doméstica, mas a pobreza e a insuficiência de creches, escolas e programas sociais? Isso sinaliza um quadro de desleixo do poder público em relação às crianças e aos adolescentes?
Cláudia Cabral – A surpresa é mais ligada à opinião pública do que a nós, que estamos envolvidos nesse setor. Sempre soubemos que a falta de assistência, de estrutura e de projetos para a família causavam isso. O resultado do levantamento foi apenas uma constatação. Para a opinião pública, de maneira geral, é que havia a impressão de que todas as crianças mantidas em abrigos eram provenientes de famílias incapazes.
A gente precisa lembrar – pois é muito importante – que a iniciativa desse projeto, dessa pesquisa, é do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. É, portanto, uma evolução do próprio processo e do papel do Conselho aqui no Rio. Nós entramos nesse projeto por concurso, juntamente com outra organização, a Excola. E dividimos bem o trabalho, fazendo abordagens complementares – nós analisamos os abrigos para crianças e eles ficaram com os adolescentes. Na prática, esse trabalho é uma busca do que determina o ECA e uma tentativa de abordar as questões da cidade na forma de parcerias envolvendo todos os atores – a sociedade, a Secretaria, todo mundo.
Rets - A Terra dos Homens acaba de ser eleita para a composição do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Qual é a interferência efetiva que esse Conselho pode ter nas políticas públicas e que papel vocês pretendem assumir?
Cláudia Cabral – O Conselho tem caráter deliberativo. E as instituições, quando passam a fazer parte da sua composição, levam sua experiência em seus campos de atuação. Mas nós estamos procurando ver a cidade como um todo e as questões que envolvem a situação das crianças e dos adolescentes de uma maneira mais ampla. E, dentro do Conselho, escolhemos participar da Comissão de Comunicação, porque percebemos a importância da opinião pública para o fortalecimento do sistema de garantias. É por isso que eu venho trabalhando muito perto da nossa equipe de comunicação, é por isso que estou conversando com vocês agora e com a imprensa, de maneira geral. Um dos nossos principais focos, neste momento, é criar um programa de comunicação que possa trazer a sociedade para perto dessas questões, fazendo com que ela tenha uma participação maior.
Rets - Embora tenha sido verificado um avanço quanto ao tempo de permanência dos jovens nos abrigos desde a implantação do ECA, o percentual em desacordo com o Estatuto ainda é muito alto. E quanto às condições dos abrigos, o que vocês observaram? Mudou alguma coisa?
Cláudia Cabral – Muito! Mudou muita coisa! Eu acompanhei o auge do Código de Menores e tenho visto que ocorreram várias mudanças. Agora, existem ainda dois pontos que precisam ser trabalhados. O primeiro é a postura dos professores. Porque sempre houve, antes mesmo do ECA, atitudes correcionais e assistenciais. Esse tipo de atitude ainda existe. E enquanto essa atitude for caritativa ou muito corretiva, acho que a gente ainda não estará no processo educacional mais adequado.
O segundo ponto é que antes as instituições não estavam muito organizadas para atender o indivíduo, a criança. Antes, o que estava em volta dos abrigos não era tão perigoso, tão nocivo. E não adianta nada se a criança sai do abrigo com muito mais risco do que há 20, 30 anos. A questão da violência vem se agravando de tal forma que, se toda a sociedade não se envolver, não tiver uma participação mais política e crítica, as grades e os muros serão cada vez maiores.
Rets - A pesquisa faz parte da primeira fase do projeto “Reordenamento de Abrigos”. O que vem depois?
Cláudia Cabral – Como é um projeto do Conselho, a gente fez um levantamento inicial para ter uma visão inicial da situação desses abrigos. Mas ainda vamos aprofundar esse trabalho, ele não se encerrou aqui. Vamos levantar mais informações – ainda há muito a ser apurado – para, quem sabe, produzir uma publicação que será ratificada pelo próprio Conselho. Agora, vamos ver como eles vão receber essa proposta. Eles tinham a intenção de investir em algumas instituições selecionadas que estivessem interessadas em apresentar e desenvolver projetos.
A pesquisa, na verdade, foi um preâmbulo. Muitos dados ainda estão sendo consolidados por nós e pela outra organização que atuou conosco nesse trabalho. A segunda etapa será o reordenamento em si, ou seja, serão eleitos alguns abrigos, aqueles que estão mais distanciados do que preconiza o ECA, para serem trabalhados, com o objetivo de adequar as suas ações.
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