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Quadro não esperado

Autor original: Marcelo Medeiros

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A eleição do presidente Lula trouxe grandes expectativas para o movimento ambiental brasileiro. A nomeação de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente as reforçou ainda mais, dado o histórico da ministra na luta pelo desenvolvimento sustentável e a convocação de integrantes de organizações ambientalistas para o governo. A idéia era que as questões ambientais ganhariam uma importância nunca vista e seriam discutidas por quem entende do assunto.

Oito meses depois, o quadro que se revela não é exatamente o que se esperava. Um exemplo é o fato de o governo ter liberado a comercialização de uma safra de soja transgênica, colhida apesar de seu cultivo estar proibido. Ao mesmo tempo, o governo não tem aproveitado o ano de orçamento apertado para estudar melhor os impactos ambientais de projetos de infra-estrutura que pretende levar adiante no futuro, nem tem implantado corretamente políticas transversais que levem em conta todos os aspectos socioambientais envolvidos.

A avaliação é do Instituto Socioambiental (ISA), que lançou no começo de agosto um balanço do primeiro semestre do governo, quanto à questão socioambiental. O documento está disponível na página da entidade e traz análise do desempenho governamental nas áreas legislativa, de reforma agrária, de povos indígenas e de meio ambiente.

Em entrevista à Rets, o coordenador do Programa de Política e Direito Socioambiental (PPDS) do ISA, Márcio Santilli, comenta os primeiros seis meses do atual governo, pesando as dificuldades encontradas para se implementarem mudanças na área e o que pode ser feito para melhorar a situação.

Rets - O Balanço comemora a chegada de novas forças ao governo, em especial a ministra Marina Silva, mas também aponta muitas dificuldades e erros nesses primeiros meses. O que significa a presença de figuras de destaque das causas socioambientais no poder e que dificuldades elas têm encontrado?

Márcio Santilli - A eleição do Lula produziu expectativas favoráveis neste campo político e a nomeação da Marina sinalizou que um maior grau de importância seria dado às questões ambientais. Houve, ainda, empenho dela em aproveitar os melhores quadros dos movimentos ambientalistas na sua equipe. Porém, a estrutura do estado brasileiro não tem a questão socioambiental no seu DNA e todos nós sabemos que a incorporação efetiva da sustentabilidade é um processo difícil em qualquer hipótese. Além disso, a conjuntura recessiva empurra o governo e a opinião pública para uma lógica de crescimento econômico, sem muita exigência quanto à sua qualidade.

Rets - Uma das principais reivindicações dos movimentos ambientalistas é a implementação da transversalidade de políticas nos ministérios. Como o ISA avalia a influência dos fatores sociais e ambientais nos projetos do governo?

Márcio Santilli - Os governos planejam os seus projetos considerando o seu tempo de mandato e o calendário político nacional. No entanto, especialmente as iniciativas potencialmente danosas ao meio ambiente, como os grandes projetos de infra-estrutura a serem implantados em regiões sensíveis, deveriam pressupor, para uma maior sustentabilidade socioambiental, estudos e consultas prévias. Como isso acaba retardando o início da sua execução, é entendido como um "obstáculo ao desenvolvimento". No entanto, sem essas providências prévias, estes projetos tendem a produzir grandes passivos ambientais e, por vezes, nem chegam a se viabilizar em decorrência de disputas judiciais ou de restrições aos investimentos que demandam. O ISA entende que o governo poderia aproveitar melhor este ano de restrições orçamentárias para tomar essas providências e evitar problemas futuros.

Rets - Como você vê a participação da sociedade civil organizada nas políticas relativas ao meio ambiente, direitos indígenas e na elaboração de propostas?

Márcio Santilli - A atuação da sociedade civil tem sido crescentemente propositiva. Há grande consenso quanto à necessidade de políticas públicas mais afirmativas neste campo, sem as quais a própria atuação da sociedade civil fica muito mais limitada. No entanto, têm sido lentas as respostas do governo - mesmo que negativas - às sugestões deste campo, talvez porque as emergências estejam absorvendo mais as autoridades que as definições estratégicas.

Rets - Qual a avaliação da política ambiental levada até agora? A postura em relação aos transgênicos surpreendeu?

Márcio Santilli - A nossa avaliação é que as nossas referências e representações no governo precisam da mobilização crítica da sociedade civil para fortalecerem a sua posição. Temos um governo de alianças, com diferenças internas, e acreditamos que a atenção do governo como um todo à dimensão socioambiental do desenvolvimento terá que ser constantemente batalhada. Quanto aos transgênicos, estamos aguardando a divulgação do projeto de lei que o governo deverá enviar proximamente ao Congresso para termos uma avaliação mais precisa, mas esperamos avanços em relação à situação anterior.

Rets - Quanto à política indigenista, o governo parece ter acertado em muitos aspectos, mas estaria esbarrando em burocracias. Os problemas apontados no relatório, como a demora em demarcar as terras de Raposa/Serra Do Sol (1,6 milhões de hectares em Roraima) e demais territórios indígenas, podem ser resolvidos?

Márcio Santilli - Dos processos de homologação de terras indígenas herdados pelo atual governo, só falta o decreto de Raposa Serra do Sol e, em termos estatísticos, a posição do presidente Lula, com 25 homologações, não é das piores. No entanto, este tipo de providência independe de burocracia ou da disponibilidade de recursos, e não faria sentido rever limites de terras já demarcadas. Por isso, pedimos ao presidente que resolva logo este caso, pois a demora mantém índios e não-índios sob o risco de mais conflitos. Quanto às demais demarcações que ainda faltam, sabemos que necessitarão de mais tempo para serem concluídas.

Rets - Na política agrária, a valorização da produtividade tem sobrepujado as funções socioambientais da terra? Por que isso acontece?

Márcio Santilli - Há uma lógica do lucro fácil, que desconsidera os passivos ambientais deixados para a sociedade, não se preocupa com a produtividade futura da terra e precisa ser combatida. Mas também há ignorância quanto ao ativo econômico que os recursos naturais representam, como a água, assim como há pessoas assentadas no campo de forma irresponsável, sem condições dignas de subsistência e, menos ainda, para produzirem de forma sustentável. Nestes casos, faltam assistência e fomento.

Rets - Em 4 de junho, um dia antes do Dia do Meio Ambiente, a ministra Marina Silva entregou ao presidente Lula uma lista de projetos prioritários para votação. O ISA concorda com essa relação? O esforço para sua aprovação tem sido suficiente?

Márcio Santilli - Sim, o ISA apóia totalmente as prioridades apresentadas pela ministra. Achamos que esta pauta, assim como outras de caráter supostamente setorial, estão sendo prejudicadas no curto prazo em função da prioridade conferida às reformas constitucionais. Esperamos que o governo se liberte logo da dependência da maioria de 60% para poder estabelecer uma agenda mais ampla e diversa na sua relação com o Congresso.

Rets - Neste dia 29 de agosto, o plano plurianual está chegando ao Congresso. Quais as expectativas em torno dele? As demandas do movimento socioambiental estão incluídas?

Márcio Santilli - Vamos esperar a divulgação do PPA para comentarmos de forma mais apropriada. Supomos que, nestes dias que antecedem esta divulgação, deva estar sendo feito o trabalho de sistematização, priorização e de integração das propostas recolhidas nos vários setores do governo e da sociedade, que é muito importante para uma avaliação. Temos certeza de que o PPA incorporará várias iniciativas positivas e importantes, mas tememos pela falta de critérios socioambientais na definição de prioridades quanto aos projetos de infra-estrutura, especialmente na região amazônica.

Rets - A aliança do governo com partidos que possuem deputados na bancada ruralista pode atrapalhar o cumprimento das promessas de campanha e as reivindicações dos movimentos sociais?

Márcio Santilli - Certamente. Avaliamos que a composição do Congresso melhorou em relação à última Legislatura, mas também que a sua atuação continua enfatizando uma postura de reação ou de restrição às demandas socioambientais, em vez de um papel formulador e propositivo, de decidir sobre as pendências existentes e tomar novas iniciativas. Esperamos, no entanto, que esta situação melhore quando a pauta do Congresso estiver mais liberada. Mas as questões socioambientais não dependem apenas da correlação de forças dentro da bancada governista e precisam também de apoio nos partidos de oposição, pois têm caráter suprapartidário.

Marcelo Medeiros

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