Autor original: Fausto Rêgo
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Uma forte explosão. Janelas estilhaçadas, o teto despencando, gente atônita, sangue, correria. Pânico. Quando finalmente conseguiu escapar, bem antes de descrever esse cenário à imprensa internacional, o diretor de Comunicações da Organização das Nações Unidas no Iraque, Salim Lone, percebeu que o Canal Hotel estava parcialmente destruído. A área onde ficava o escritório do enviado especial da ONU ao país, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, havia se transformado em uma montanha de escombros.
Bagdá era – e ainda é – um barril de pólvora. Os soldados norte-americanos quase diariamente são vítimas de pequenos ataques isolados. Meses após o fim da guerra, o caos no país ocupado persiste e as tensões aumentam. Não era, portanto, improvável que algo de maiores proporções ocorresse. O que muitos não imaginavam era que os ataques chegariam até a ONU, que não apoiara a invasão e tinha ali o papel de conduzir o processo de devolução do controle do Iraque aos iraquianos. O próprio Sérgio, em entrevista concedida ao jornal “O Estado de São Paulo” apenas dois dias antes do atentado, disse que em Bagdá não se sentia em perigo como em outros lugares onde estivera trabalhando. Ao responder se a ONU não poderia ser um alvo para terroristas, foi firme: “Não acredito. A ONU ainda é muito respeitada pela população local. Os iraquianos, ao contrário do que sentem pelas forças de ocupação, olham para a ONU como uma organização independente e amiga. Por isso acho que confiam no nosso trabalho e sabem que estamos aqui para ajudá-los”.
Sérgio já vira esse filme antes. Em seus 33 anos de carreira diplomática, era quase um especialista em situações de crise. Servira às Nações Unidas no Camboja, em Bangladesh e nos pós-guerra de Kosovo e de Timor Leste. Mais um mês e estaria de volta ao porto seguro da sede da organização, em Genebra, onde há quase um ano chefiava o escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Mas, como costumava dizer, ele era um diplomata que gostava de “sujar as botas”.
Em fevereiro, na Universidade de Columbia, em Nova York, durante o Sur International Meeting, evento que comemorava o décimo aniversário do órgão que comandava, Sérgio destacou como sua grande preocupação a “questão T” – uma referência ao terrorismo internacional. “Não sei se por uma trágica coincidência ou por premonição, ele morreu justamente como vítima daquilo que combatia”, lamenta Oscar Vilhena Vieira, diretor executivo da Conectas Direitos Humanos, que organizava o evento.
Foi o último contato que tiveram, embora de lá pra cá tivessem prosseguido os entendimentos para formação de uma parceria que pudesse ampliar os direitos humanos no hemisfério sul. Segundo Oscar Vilhena, Sérgio percebia que para esses países havia uma dificuldade muito maior de acesso à ONU. “Vejo que hoje, até mesmo diante dos acontecimentos, há uma clareza dramática dessa situação: é preciso levar em consideração os interlocutores que até então não eram ouvidos, é fundamental ouvir a outra cultura e seus argumentos”, defende.
Para Vilhena, o assassinato de Sérgio Vieira de Mello deve servir de alerta à ONU para que a organização reveja seu desempenho como interlocutora. “Sua submissão à diplomacia unilateral que os EUA vêm praticando é ineficaz e pode resultar em tragédias como essa”, adverte.
A análise do jornalista Robert Fisk, do jornal inglês “The Independent”, reforça o diagnóstico de um impasse: se a ONU, até aquele momento, não havia conseguido espaço político para uma participação efetiva no processo de reconstrução do Iraque, impunha-se, dali por diante, a necessidade de assumir a responsabilidade integral, pois o episódio mostrara que os EUA haviam perdido o controle da situação. Segundo Fisk, nenhuma organização não-governamental ou humanitária e nenhum investidor ou empresário poderão se considerar seguros sob a ocupação norte-americana. De fato, nos dias que se seguiram, a organização Médicos sem Fronteiras suspendeu suas atividades na cidade de Basra e a Oxfam International abandonou temporariamente o país. Ambas alegaram falta de segurança.
Em artigo publicado no jornal “Folha de São Paulo”, o professor da USP Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário Nacional de Direitos Humanos no Governo Fernando Henrique Cardoso, adverte que não há solução para o impasse no Iraque que não seja a efetiva intervenção da comunidade internacional, por intermédio da ONU. E afirma: qualquer tentativa de enfraquecer a ação das Nações Unidas fragiliza o mundo.
Amigo de Vieira de Mello há cerca de 25 anos, Paulo Sérgio acredita que o acontecimento deve levar a ONU a fazer uma revisão do seu papel. “Não há como fazer de conta que nada aconteceu. Para as Nações Unidas, guardadas as devidas proporções, esse atentado foi um ‘11 de Setembro’”. Segundo o professor, o alvo do ataque não era Sérgio, nem mesmo a ONU, mas os Estados Unidos. “Na impossibilidade de atacar os bem protegidos prédios da administração norte-americana, os criminosos preferiram um alvo mais fácil”.
Críticas
Se em Bagdá a segurança para as equipes da ONU era reduzida, havia um aparato razoável em torno do brasileiro durante sua permanência em Timor Leste. Marcelo Carvalho, jornalista do Ibase, participou durante seis meses do Projeto Ibase Timor Leste, em 2001, período em que o novo país estava sob administração da ONU. Marcelo conta que às vezes o diplomata saía cercado de seguranças para suas corridas matinais. O medo não era tanto de uma reação violenta dos timorenses – havia um clima de tensão, mas não de hostilidade. O perigo era que milícias indonésias pudessem cometer um atentado.
No acompanhamento do trabalho das organizações da sociedade civil timorense, Marcelo testemunhou críticas ao trabalho desenvolvido pela missão das Nações Unidas. “Era uma situação bastante difícil, estavam criando um Estado nacional em Timor, um lugar que nunca tinha tido uma experiência dessas”, conta. “Quando os indonésios saíram de lá, foi pedida a intervenção da ONU. E era uma incumbência bastante complicada, os indonésios haviam destruído muita coisa. Do lado das organizações da sociedade civil, a expectativa era muito grande. E havia a expectativa de que aquele governo provisório fosse conduzido de maneira mais democrática. Mas não foi como eles esperavam. Houve um período curtíssimo de consulta popular, uma coisa meio pro-forma, e depois as decisões passaram a ser tomadas de cima para baixo”. Marcelo, porém, faz uma ponderação: “A gente se pergunta se seria possível fazer de outra forma, até porque a ONU não poderia permanecer muito mais tempo por lá, então as decisões precisavam ser rápidas”.
A revelação de que havia críticas ao trabalho de Sérgio Vieira em Timor desafina o coro da cobertura jornalística de sua morte. De maneira geral, a mídia preferiu tratá-lo como herói. Para Marcelo, no entanto, essa imagem é um erro e um desrespeito. “Não sei a que serve a redução de uma pessoa a esse ponto. Ele não era um herói, mas um ser humano como qualquer outro, com defeitos e qualidades”, afirma.
Se é para recordar Sérgio Vieira de Mello, melhor esquecer seu suposto heroísmo e ficar com o que ele disse em novembro passado, em Viena, Áustria, durante o seminário “Visões para o futuro das comunicações”: “Gostaria de deter-me por um momento nas possíveis conseqüências da reação aos ataques terroristas para a liberdade de expressão e opinião. (...) É particularmente importante que os Estados considerem as implicações nos direitos humanos de qualquer passo que dêem em resposta a esta ameaça. Responder ao terror retrocedendo nos direitos humanos arduamente conquistados é entregar a vitória aos terroristas”.
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