Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Artigos de opinião
Washington Novaes*
Noticia-se que foi criado por decreto presidencial o Dia do Cerrado, a ser comemorado agora, em setembro. Muito bom. Talvez se passe a dar mais atenção ao bioma. Pena que ele já esteja ameaçado de extinção, segundo a Embrapa Monitoramento por Satélite, segundo a qual só existe, com possibilidade de sobrevivência (fragmentos com pelo menos 2 mil hectares contínuos, capazes de preservar as cadeias genéticas e reprodutivas), menos de 5% do bioma que, com mais de 2 milhões de quilômetros quadrados, já foi o segundo maior do país e era a savana mais rica do mundo em biodiversidade. Hoje, é um dos hotspots do planeta, um dos biomas mais ameaçados, segundo a Conservation International.
Talvez com o decreto presidencial se consiga até que o Cerrado passe a ser escrito com letra maiúscula. Hoje, em todos os lugares, jornais, livros, revistas, textos etc., se escreve cerrado com "c" minúsculo, como se ele fosse um bioma de importância secundária, e não o detentor de um terço da biodiversidade brasileira, berço das águas das três principais bacias hidrográficas nacionais. Não tem a honra da maiúscula, como Amazônia, Mata Atlântica, Pantanal Mato-Grossense, Zona Costeira e Serra do Mar, assim reconhecidos (com maiúsculas) pelo parágrafo 4º do artigo 225 da Constituição Federal como patrimônio nacional (há um projeto do então deputado Pedro Wilson no Congresso elevando o Cerrado a patrimônio, mas até aqui não foi aprovado).
Talvez a posição lingüística subalterna do Cerrado, ao lado da Caatinga, se deva também a algo inconsciente (para parte das pessoas) na sociedade, que é admitir como preferível que o Cerrado seja tirado do mapa pelo avanço da fronteira agropecuária, porque pelo menos se preserva a Amazônia, como é freqüente ouvir.
Algumas semanas antes da conferência mundial Eco 92, no Rio de Janeiro, o autor destas linhas, na época secretário de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia do Distrito Federal, foi convidado a participar de uma teleconferência no Ibama, em Brasília, já que fora um dos contribuintes do Relatório Preliminar brasileiro para a cúpula. E a certa altura alguém perguntou sobre as queimadas no Cerrado do Centro-Oeste. A presidente do Ibama, que presidia os trabalhos, respondeu que ainda bem que é no Cerrado (ou cerrado?), e não na Amazônia. Ao secretário de Meio Ambiente de uma unidade federativa do Cerrado não restava alternativa que não levantar-se ostensivamente da primeira fila e retirar-se enquanto assessores da presidente corriam para tentar evitar o vexame e ela mesma, por telefone, mais tarde, se desculpasse, atribuindo tudo a um equívoco.
Claro que era mais grave partindo da ocupante de um posto como aquele, no órgão federal exatamente encarregado de proteger os biomas nacionais. Mas não era exceção. Ali mesmo, no Distrito Federal, uma pesquisa de opinião feita nos primeiros dias de gestão na Secretaria, para orientar os trabalhos do órgão, mostrou que a quase totalidade da população da capital do país considerava o Cerrado uma paisagem que, além de tudo, seria triste, feia e inútil. Com essa visão, como trabalhar para proteger o Cerrado, visto não como um elemento constitutivo da vida, e sim como uma paisagem distante, sem nenhuma utilidade, até desagradável aos olhos? Por isso mesmo, decidiu-se aplicar mais de 50% do orçamento da Secretaria em educação ambiental em toda a rede escolar pública do DF. Pelo menos as crianças e os jovens poderiam ajudar, se entendessem corretamente.
Agora, o avanço da fronteira agropecuária, com a eliminação de praticamente toda a vegetação do Cerrado (a ocupação já chegou ao Sul do Piauí e Maranhão, do Oeste baiano quase nada mais resta, as reservas legais de 20% em cada propriedade são apenas uma ficção na quase totalidade dos casos), coloca sobre a mesa várias questões simultâneas:
• que se fará para preservar a biodiversidade do Cerrado que resta, para que ainda se possa estudá-la, conhecê-la, transformá-la, em benefício da sociedade brasileira, em medicamentos, alimentos, novos materiais?
• que se fará para impedir que práticas anacrônicas coloquem em risco, como está acontecendo, as bacias hidrográficas do Cerrado e já ameacem até o gigantesco Aqüífero Guarani, com a infiltração de agrotóxicos e outros poluentes, assim como pela extração desordenada de água em muitos pontos? Que se fará para que cesse o desperdício de água por sistemas ultrapassados como o dos pivôs centrais, que desperdiçam até 50% da água que consomem? (convém lembrar que a agropecuária brasileira consome mais de 80% da água no país e que se houvesse uma economia de 10% na irrigação a parcela poupada seria suficiente para abastecer o triplo de toda a população urbana brasileira, segundo cálculo de um dos maiores especialistas, o professor Aldo Rebouças, da USP)
• que se fará para eliminar ou pelo menos reduzir muito a perda brutal de solo nas culturas de grãos, que chega a 10 toneladas de solo erodidos para cada tonelada de grãos produzida? Que se fará para expandir o plantio direto e outras práticas (que não aumentem o consumo de herbicidas) que protegem o solo e minimizam essa erosão? (o Brasil perde hoje 1 bilhão de toneladas de solo por ano com essa erosão, segundo documentos dos Ministérios do Meio Ambiente e Agricultura).
Em resumo, quando se terá uma política abrangente para o Cerrado? Ela teria ainda uma segunda e enorme vantagem, nesta hora em que já se planeja o avanço, oficializado por diretrizes governamentais, da fronteira agropecuária na Amazônia. Para isso, planeja-se a implantação da hidrovia Araguaia-Tocantins, até hoje não licenciada pelo Ibama, tal a fragilidade, para dizer o mínimo, do respectivo estudo de impacto ambiental. Planeja-se a implantação da hidrovia do Rio Madeira. Projeta-se a pavimentação da rodovia Cuiabá-Santarém, que, vários estudos mostram, será desastrosa em termos de desmatamento da Amazônia (que já está em mais de 25 mil quilômetros quadrados por ano, mais de 70 quilômetros quadrados por dia). Mais grave que tudo, planeja-se o plantio de 80 mil quilômetros quadrados de grãos no eixo Noroeste de Mato Grosso-Rondônia-Acre, de modo a implantar um green belt (cinturão verde) com saída para o Pacífico, como disse ao autor destas linhas alta autoridade federal.
E tudo isso no momento em que centenas de estudos científicos mostram que os solos amazônicos não se prestam à agropecuária, por sua fragilidade, grau de umidade e outros fatores. Em pouquíssimos anos se esgotam, deixam atrás a terra devastada.
Uma política para o Cerrado (com maiúscula). Uma política para a Amazônia. Urgente.
*Washington Novaes é jornalista
A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados. |
Theme by Danetsoft and Danang Probo Sayekti inspired by Maksimer