Autor original: Marcelo Medeiros
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A organização Médicos Sem Fronteiras lançou na última semana uma campanha contra a inclusão de aspectos relativos à propriedade intelectual no acordo da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Com o slogan “Medicamentos não deveriam ser um luxo, a saúde não se negocia na Alca”, a iniciativa pretende conscientizar a população sobre as conseqüências da proposta norte-americana em relação à propriedade intelectual e pressionar governos a retirarem esse tema do acordo, pois da forma como está seria um retrocesso ao Tratado de Doha – assinado em dezembro de 2001, após muita briga – e traria muitos prejuízos aos países em desenvolvimento das Américas.
A Alca tem seu início previsto para 2005 e negócios estimados em US$ 13 trilhões anuais. Nesse ano, os países da América Latina e do Norte, com exceção de Cuba, irão fazer parte de um mercado comum, dentro do qual não haverá barreiras comerciais para bens, serviços e investimentos.
De acordo com os Médicos Sem Fronteiras, no tocante a medicamentos, a versão atual do acordo reflete os interesses do governo e principalmente das indústrias farmacêuticas dos EUA, detentoras de diversas patentes. A segunda minuta do acordo prevê o aumento das restrições impostas à fabricação e à importação de remédios genéricos estabelecidas no Acordo Internacional sobre Direitos de Propriedade Intelectual, o que prejudicaria a maioria dos países integrantes da área de livre comércio. Preços altos seriam mantidos por causa da restrição à concorrência.
O Trips, sigla em inglês pela qual ficou conhecido o acordo internacional, regulamenta o respeito a patentes para todos os membros da OMC e prevê a possibilidade de produção interna de medicamentos registrados por meio de autorização governamental (os genéricos - remédios de mesma fórmula, mas sem marca) ou sua importação de produtores de genéricos.
Por preverem mais do que a regra mundial, esses acordos regionais são conhecidos também como “Trips-plus”. “Se as propostas norte-americanas passarem, a propriedade intelectual será fortalecida e o monopólio nessa área irá aumentar”, alerta Michel Lotrowska, representante da campanha por medicamentos essenciais dos MSF no Brasil.
Polêmicas no texto
Segundo a organização, a Alca limitaria as possibilidades de quebra de patentes mais do que a declaração da OMC, que admite o direito de emissão de licença compulsória de produção de remédios desde que critérios do Trips sejam obedecidos. Entre eles está fabricar somente no caso de risco à saúde pública e, no caso de exportações, vender apenas a países sem condições de fabricá-los. Essa posição já é considerada por ONGs ligadas à questão como favorável às corporação farmacêuticas, por privilegiar a lógica econômica em vez da humanitária.
O texto do acordo regional afirma que “a autorização deverá ser concedida somente para interesses públicos não-comerciais ou em situações de emergência nacional declarada ou outras situações de extrema urgência”. Hoje há possibilidade de autorização de produção de remédios em casos de preços abusivos, por exemplo.
Outro ponto é a extensão dos prazos de validade de patentes para produtos farmacêuticos além dos 20 anos determinados no Trips e considerados mais do que suficientes para a recuperação de investimentos feitos pelas empresas. “Cada país membro, sob solicitação do dono da patente, deverá estender o prazo de validade de uma patente para compensar atrasos excessivos que ocorram na concessão desta”, diz o texto da Alca. Essa situação retardaria ainda mais a entrada de concorrentes no mercado de medicamentos e é agravada pela sobrecarga dos institutos de patentes, que não têm dado conta de registrar o crescente número de pedidos.
A versão atual do acordo da Alca inclui artigos que exigem que as donas de patentes sejam avisadas se alguma outra empresa estiver pedindo autorização para vender a versão genérica de um registro ainda em vigor. “Isto efetivamente significa que as autoridades reguladoras de medicamentos funcionarão como agências fiscalizadoras de patentes e isto provavelmente resultará em extensões injustificáveis de patentes”, escreve Nicolas de Torrente, diretor-executivo do MSF dos EUA, em carta aberta enviada aos chefes de governo de todos os 34 países envolvidos no acordo em 30 de abril.
Além disso, a Alca garantiria às empresas direitos exclusivos por cinco anos sobre informações clínicas exigidas por autoridades reguladoras para aprovação da comercialização. Essa garantia não é prevista no Trips e, segundo os MSF, resultaria em atraso e limitação da concorrência onde uma patente não exista ou o comércio de genéricos tenha sido autorizado.
Dados
De acordo com dados do fim de 2002 da Organização Mundial de Saúde, existem nas Américas aproximadamente três milhões de casos de Aids registrados. Desses, 1,9 milhões estão na América Latina e no Caribe (500 mil no Brasil), o que posiciona o continente apenas atrás da África na lista de infecções. A eles podem ser somados milhares de pessoas com doenças típicas de regiões pobres, como a malária e a Doença de Chagas, cujos custos de pesquisa e desenvolvimento não são pagos pela venda de remédios – destinados a populações pobres, sem condições de pagar seu preço.
Boa parte desses medicamentos é registrada por empresas norte-americanas, que tomam duas atitudes. Uma é não fabricar os remédios, ao mesmo tempo que não autorizam a produção local ou a importação de locais onde foram desrespeitadas as patentes, como Brasil e Índia. Esse mecanismo de compra no exterior é chamado de importação paralela – também proibida pela Alca.
A outra é a manutenção de altos preços, por falta de concorrentes. Como exemplo do abuso praticado por elas pode-se pegar o caso dos medicamentos antivirais de tratamento de Aids. Em locais onde não existe concorrência de genéricos, a terapia básica está orçada entre US$ 10 mil e US$ 12 mil anuais. Esse é o custo do tratamento nos EUA, por exemplo. Já no Brasil, onde patentes foram quebradas, o valor não ultrapassa cinco mil dólares, de acordo com o Ministério da Saúde.
“Ainda assim, é um valor alto para os padrões locais”, lembra Michel Lotrowska. O representante dos MSF ressalta ainda que, apesar de elogiada, a legislação brasileira é mais restritiva do que a Declaração de Doha, pois não permite a importação paralela –os medicamentos só podem ser fabricados no Brasil. “E a Alca só pioraria esse quadro”, garante.
As indústrias brasileiras fabricam oito dos 15 remédios componentes do coquetel anti-Aids. Os genéricos, em média, são 80% mais baratos do que os de marca e já renderam ao governo uma economia de dois bilhões de reais de 1996 até 2002 em internações e outros tratamentos.
O Alca seria inclusive um retrocesso ao acordo firmado pela Organização Pan-Americana de Saúde em junho com farmacêuticas. Dez países (Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, Chile, Argentina, México, Paraguai e Uruguai) conseguiram descontos nos preços de medicamentos usados em tratamento da Aids. O custo da terapia anual por paciente irá baixar da faixa de US$ 1 mil a US$ 5 mil para US$ 350 a US$ 690. Ao assinar o acordo, essas negociações podem ruir, pois a concorrência estará ameaçada.
Caminhos
A solução apontada é a negociação da propriedade intelectual na OMC, como os EUA tentam fazer com a agricultura, ao alegarem que há mais envolvidos nas relações comerciais do que os habitantes das Américas. O governo brasileiro tem adotado a mesma postura em relação à propriedade intelectual. Brasil e Estados Unidos dividem a presidência das negociações da Alca, previstas para serem encerradas até janeiro de 2005, devendo entrar em vigor no máximo em dezembro do mesmo ano. A próxima reunião acontece em novembro, em Miami (EUA).
A campanha dos Médicos Sem Fronteiras disponibiliza uma carta-padrão para os internautas enviarem a seus governantes, mas a intenção principal é a conscientização da população. “A Alca é algo que interfere diretamente na vida de todos. Temos que nos mobilizar”, conclama Lotrowska.
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