Autor original: Mariana Abreu
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
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Cícera começou a trabalhar no corte de cana ainda criança e só parou depois de casada, com mais de 20 anos, quando foi para a cidade de Água Preta. Em 95, foi convidada a participar de um encontro do Centro de Mulheres do Cabo, com o objetivo de fundar um centro semelhante em sua cidade. Ela gostou tanto da idéia que se envolveu no movimento e não parou mais. Hoje, acumula um número impressionante de atividades: participa ativamente do trabalho de cerca de seis entidades e projetos, entre eles a Rádio Mulher.
Mesmo com tanta capacidade e disposição, Cícera sempre esbarrou em um obstáculo. Analfabeta, não tinha autonomia para realizar tarefas simples, como buscar notícias da região para o programa de rádio. No ano passado, aos 41 anos, mãe de 6 filhos e avó de 5 netos, ela aprendeu a ler e escrever. Agora se prepara para concluir sua segunda alfabetização: a digital.
A ex-cortadora de cana foi uma das mulheres da Zona da Mata Sul de Pernambuco selecionadas para participar do Projeto Conexão G. Realizado pelo Centro de Mulheres do Cabo (CMC) e pela SOS Corpo, desde junho o projeto começou a promover a inclusão digital de líderes do movimento de mulheres da região. "Cícera disse que mal aprendeu a ler e escrever e se sentia excluída de novo, por não saber usar o computador. Ela falou que precisava de uma nova alfabetização, a digital. Fiquei impressionada com a reflexão dela, porque eu já li alguns textos sobre o assunto, mas ela nunca tinha ouvido nada sobre isso", conta a coordenadora e professora do projeto, Micheline Américo, do Centro de Mulheres do Cabo.
A reflexão de Cícera é uma mostra do que representa para estas mulheres a oportunidade oferecida pelo projeto. No Conexão G, a inclusão digital não se restringe à parte técnica e abrange questões mais amplas. Além de conhecer a operação de softwares e a articulação em redes eletrônicas, o que por si só significa um grande salto, as alunas participam de discussões políticas sobre a relação entre os direitos reprodutivos e sexuais e as novas tecnologias de informação e comunicação. Micheline explica que o principal objetivo é fortalecer e potencializar o trabalho do movimento organizado de mulheres da Zona da Mata Sul.
Encurtar distâncias
Desde a década de 80 o CMC vem fomentando a criação de grupos de mulheres na região que, originalmente grande produtora de cana-de-açúcar, viu a economia declinar nos últimos dez anos. Com a experiência do dia-a-dia, Micheline percebeu certas deficiências destas organizações, como a dificuldade para se articular em rede ou captar recursos. "Vivemos hoje na sociedade da informação. Para haver mobilização é preciso um instrumento que encurte as distâncias. Não é possível fazer um trabalho isolado, no meio das canas", afirma a coordenadora.
Foi esta constatação que a motivou a elaborar e apresentar o projeto Conexão G para a Fundação Carlos Chagas, que patrocina as atividades de intervenção. Por um estudo da Fundação Perseu Abramo, Micheline soube que 73% das mulheres brasileiras nunca usaram computador, 86 % não tiveram nenhum contato com a internet e, pior ainda, mais de 30 % nem sabem o que é isso. Ela conta que as mulheres da zona rural são ainda mais excluídas que as da cidade: "Nenhum centro de mulheres da região tem computador, nem telefone. Até para redigir um ofício elas tinham que ir até uma das usinas, que são distantes, para usar a máquina de escrever de favor".
O projeto promete mudar esta realidade. "Queremos mostrar a essas mulheres que o computador não é um mero instrumento tecnológico e que pode viabilizar muita coisa. Queremos que elas percebam como ele pode contribuir com o trabalho e a militância delas", diz Micheline. A coordenadora acrescenta que para socializar e fomentar o debate em torno dessa questão, os conteúdos apresentados durante o curso são difundidos para todos os 21 municípios da Zona da Mata Sul. Através do programa Rádio Mulher, que vai ao ar pela emissora Quilombo, o projeto veicula campanhas, entrevistas, debates, notícias e outras informações. Além disso, todas as alunas se compremeteram a repassar o que aprenderam às demais mulheres de suas organizações de origem quando a capacitação terminar, em novembro deste ano.
Reflexão e expectativa
Na primeira etapa, as aulas foram apenas teóricas. Como não têm muita bagagem literária, as alunas trabalharam temas relativos aos direitos reprodutivos e sexuais por meio de atividades com jogos, músicas e textos curtos. Nas aulas, a partir de seu próprio conhecimento, refletiram sobre como as tecnologias podem ser usadas para facilitar e ampliar as ações políticas que já realizam em suas organizações. No final de cada encontro, divididas em grupos, elas apresentaram suas conclusões sobre os assuntos discutidos. Micheline está satisfeita com os resultados obtidos até agora: "Percebo nelas muita expectativa e uma grande vontade de aprender. Elas chegam empolgadas e bastante curiosas".
Embora as aulas práticas comecem apenas na segunda quinzena de setembro, desde o início Micheline fez questão de manter um computador ligado e conectado à internet o tempo todo. "Queria que elas já fossem tendo uma idéia do que era a máquina, a rede, e que tivessem mais vontade de conhecer". A tática deu certo: nos intervalos, quem já tinha alguma noção corria para o computador e as outras ficavam em volta, observando.
"Posso me comunicar
Numa fração de segundos
Com o outro lado do mundo
Sem nunca ter ido lá."
O verso acima é a última estrofe do maracatu do grupo Leão Misterioso, usado nas primeiras aulas para dar às alunas uma idéia do que é a internet. Antes incompreensível e distante da realidade da maior parte delas - os engenhos de cana -, a idéia começa a fazer sentido. "Antes eu nem conseguia imaginar o que era. Só pensava: meu Deus, é uma coisa muito boa, mas está longe de mim, preciso me aproximar disso", diz Cícera, que agora sonha com o próprio computador. "Eu ia poder trabalhar muito mais. Mandava minhas notícias para a rádio pela internet e tinha tempo para trablhar muito mais", acrescenta ela.
Lindinalva Panta, coordenadora do Centro de Mulheres de Catende, também começa a imaginar as possibilidades que o computador oferece. Sua organização faz prevenção de câncer de colo de útero com mais de 2 mil mulheres da zona rural. Todo o trabalho é feito manualmente. "A gente não tem nem máquina, escreve tudo à mão. Fica confuso e acabamos esquecendo muita coisa. Com o computador vai ficar muito melhor", diz.
Ela conta que hoje, assim como as companheiras do movimento, não sabe bem como fazer um projeto e acredita que com a internet será mais fácil aprender: "vamos poder trocar experiências, conhecer os projetos de outras entidades que atuam na mesma área e mostrar nosso trabalho também".
Lindinalva, que prefere ser chamada de Bidô, confessa que não queria participar do curso: "Eu tinha medo de não aprender. Nunca imaginei que depois dos 40 ia ficar de frente com uma máquina dessas. Mas agora não vejo a hora de chegar perto dele (computador)".
Não são apenas as alunas que aguardam este momento com ansiedade: as outras mulheres dos centros também. "Elas ficam atrás de mim querendo saber quando é que eu vou ensinar pra elas", conta, rindo, Bidô. Na sua opinião, todos os centros deveriam estar ligados à rede.
Para a coordenadora Micheline, estes são apenas os primeiros passos para a inclusão digital. Ela quer ampliar o projeto com a aquisição de equipamentos e instalação de telecentros. Micheline conseguiu verba da DED (Serviço de Cooperação Alemão) para equipar o centros com computadores e impressoras, que vão ficar disponíveis para uso da comunidade. Faltam as linhas de telefone, que ela pretende conseguir com a operadora telefônica local. "A estratégia é buscar parcerias na iniciativa privada, poder público, agências de cooperação e fundações para informatizar as organizações envolvidas na proposta e posteriormente instalar telecentros para atender toda a comunidade", conclui Micheline.
As mulheres da Zona da Mata Sul agradecem.
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