Autor original: Marcelo Medeiros
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Recentemente, o Grupo Pela Vidda do Rio de Janeiro, organização que luta pela integração e pela cidadania das pessoas que vivem com HIV/Aids, foi convidado para participar da elaboração de um guia internacional com informações para a estruturação de ações em resposta à doença. A publicação, chamada de Code of Practice for NGOs Working in the HIV/Aids Response [Código de Prática para ONGs que Trabalham em Ações de Resposta ao HIV/Aids], será lançada na próxima Conferência Internacional de Aids, que acontece na Tailândia, em 2004. Onze organizações estão envolvidas na iniciativa e o Pela Vidda é o único representante da América Latina.
A participação é resultado do reconhecimento do trabalho que a organização desenvolve há 14 anos. Nessa entrevista à Rets, Octávio Valente, presidente do Pela Vidda, fala da importância desse guia, da luta contra o vírus no país e no mundo e dos desafios das ONGs/Aids. “O Brasil pode contribuir com muita coisa”, diz ele.
Rets - Como vocês receberam o convite para integrar o grupo responsável pela elaboração desse guia e de que forma o Grupo Pela Vidda vai participar?
Octávio Valente - O Grupo Pela Vidda é reconhecido internacionalmente como uma organização de base comunitária de importante destaque na resposta à epidemia de Aids no Brasil. Para exemplificar, o Pela Vidda Rio e o Pela Vidda Niterói são os responsáveis pela realização do maior evento comunitário de Aids da América Latina, o Encontro Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids, que costuma contar em média com de 800 a mil participantes. Além deste reconhecimento, um parceiro importante do Pela Vidda, a International HIV/Aids Alliance, da Inglaterra, foi quem realizou a primeira reunião, em dezembro de 2002, que deu origem a esta iniciativa. Nesta reunião, foram definidas as organizações e os países que participariam deste esforço. O convite também se deu através da GNP+ (Rede Global de Pessoas Vivendo com HIV e Aids). A participação do Pela Vidda vai acontecer na fase de elaboração do conteúdo deste guia prático, na sua fase de testes, previamente ao lançamento, e na definição da estratégia de divulgação e distribuição.
Rets - O que se pretende com essa publicação e como ela vai ser distribuída?
Octávio Valente - Os objetivos são tornar a resposta ao HIV/Aids mais efetiva, empoderar ONGs, pessoas vivendo com HIV e Aids e grupos vulneráveis, melhorar a oferta de serviços às populações menos favorecidas, melhorar a qualidade, promover coesão, comprometimento e responsabilidade para a resposta ao HIV/Aids, prover diretrizes em nível estratégico e operacional para novas organizações na resposta ao HIV/Aids.
Não se definiu ainda a forma de distribuição, porém o guia será lançado durante a próxima Conferência Internacional de Aids, em 2004, na Tailândia.
Rets - O Projeto Buddy, que vocês implementaram em 1997, teve como modelo uma experiência holandesa. Há iniciativas brasileiras sendo adotadas em outros países? Como essa colaboração entre entidades internacionais pode se traduzir em novos projetos?
Octávio Valente - Há alguns anos, tem sido uma prática comum ONGs/Aids como o Pela Vidda trocarem experiências com organizações de outros países. No caso do Pela Vidda, podemos destacar as experiências relacionadas à convivência, à integração e ao resgate da cidadania de pessoas vivendo com HIV e Aids, apresentadas em visitas realizadas ao México e ao Equador, por exemplo. Também temos recebido a visita de comitivas de outros países, como a Tailândia, para as quais tivemos oportunidade de apresentar as conquistas obtidas graças à ação da sociedade civil, no campo dos direitos humanos, do acesso ao tratamento e da militância política. As conferências internacionais também representam um importante momento de disseminação de práticas bem-sucedidas, através da apresentação de pôsteres e de apresentações orais. Estas práticas possibilitam a implementação de ações ou projetos semelhantes aos nossos, seja na área de prevenção, atenção, assistência, do direito ou ativismo, adequando-os às especificidades locais.
Rets - O Programa de DST/Aids brasileiro é muito elogiado e as organizações da sociedade civil envolvidas nesse tema são, em geral, bastante atuantes. O fato de o Grupo Pela Vidda ter sido a única instituição latino-americana a ser convidada para o projeto é sintoma de que o Brasil ainda mantém uma posição de vanguarda nesse campo?
Octávio Valente - Definitivamente. Ainda há muitos desafios a serem transpostos para uma atenção integral às pessoas vivendo com HIV e Aids. Se pensarmos no campo da sáude, apesar das lacunas existentes, avançamos muito – sociedade civil e governos. E isto foi muito importante para mostrar ao mundo que é possível tratar pessoas com Aids em países em desenvolvimento. Entretanto ainda precisamos ampliar o diálogo com outros setores da sociedade, além da saúde, para uma resposta mais efetiva à epidemia. É preciso pensar na Aids dentro de um contexto mais amplo, que envolve temas como educação, desenvolvimento econômico e social, segurança e direitos humanos, entre outros.
Rets - A partir desse intercâmbio que o Pela Vidda Rio tem tido com outras organizações e equipes de governo, o que você percebe de diferente no Brasil e no exterior em relação ao tratamento da Aids e à postura da sociedade em relação a ela?
Octávio Valente - No sistema de saúde, podemos falar que a existência do Sistema Único de Saúde (SUS) é um diferencial. Os EUA, por exemplo, não possuem uma rede pública. Lá é preciso pagar por tudo. Outros países não têm uma estrutura mínima. Não há médicos e outros profissionais de saúde. É difícil comparar, cada país possui sua especificidade.
Rets - E o que há em comum?
Octávio Valente - Não há muito. Mas o Brasil pode contribuir com muita coisa. A própria organização social é uma lição, mas em outros lugares é preciso disposição para criar algo semelhante. No Brasil, o movimento de Aids é específico por surgir de um movimento já existente, o homossexual. Assim como nos EUA, esse grupo se viu afetado pela epidemia e já tinha capacidade de organização. Onde a homossexualidade ainda é crime a resposta certamente será diferente. Afinal um homossexual não vai poder ser voluntário em testes de vacinas, pois ele é ilegal.
Rets - O presidente do Movimento Gay de Minas, Oswaldo Braga, escreveu recentemente um artigo em que alerta para a possibilidade de o programa de combate à Aids brasileiro ser prejudicado pelo posicionamento conservador do governo dos EUA em relação à homossexualidade. Segundo Oswaldo, isso poderia levar entidades norte-americanas de cooperação internacional como a USAid, que apóia o programa brasileiro, a reverem seus investimentos aqui. Você acredita nessa possibilidade?
Octávio Valente - Não precisamos ir muito longe para diagnosticar riscos para a manutenção ou ampliação de ações de enfrentamento da epidemia. Isto já acontece em nível nacional, se pensarmos em governos conservadores e discriminatórios, que dificultam não apenas as ações voltadas para os homossexuais, mas também as estratégias de redução de danos para usuários de drogas injetáveis.
Rets - Outra ameaça ao programa surgiu recentemente, quando os laboratórios se recusaram a reduzir os preços dos medicamentos anti-retrovirais. Como garantir a autonomia do programa brasileiro?
Octávio Valente - Até agora o Brasil não precisou quebrar a patente de nenhum medicamento anti-retroviral, graças às negociações com a indústria farmacêutica internacional e à produção interna de medicamentos, que reduziu significativamente os custos da assistência às pessoas vivendo com HIV e Aids. Diante do impasse, acredito na alternativa do licenciamento compulsório para produção interna e na quebra de patentes, considerando que a Aids é uma questão de emergência nacional. Acredito também na mobilização da sociedade, como no passado, para mostrar ao mundo que o lucro dos laboratórios não pode se sobrepor às vidas das pessoas afetadas pela epidemia.
Rets - A posição da Igreja Católica em relação à homossexualidade não é nenhuma novidade. Houve, porém, um endurecimento do discurso e um incentivo a uma ação política mais efetiva por parte dos legisladores católicos, de forma a barrar propostas como a da união civil. Como você vê essa atitude?
Octávio Valente - Os dogmas religiosos, via de regra, representam um obstáculo para o exercício pleno da cidadania e para a dignidade de populações marginalizadas ou mais vulneráveis. E não me refiro apenas às questões relacionadas à união civil entre pessoas do mesmo sexo. A posição da Igreja Católica contra o uso do preservativo representa um desafio a mais nas estratégias de prevenção ao HIV/Aids. As palavras-chave são educação e parceria. A saída é tentar sensibilizar a sociedade e os legisladores menos conservadores ou apoiadores da causa homossexual, para diminuição do preconceito.
A mídia tem um papel importante neste contexto. Um bom exemplo é a novela [da Rede Globo] "Mulheres Apaixonadas", em que o autor ressalta os aspectos negativos do preconceito e dá destaque ao posicionamento firme e digno das personagens que vivem o casal adolescente de lésbicas. Penso que as experiências de outros países, como a Argentina, poderão influenciar o posicionamento arbitrário de nossos legisladores.
Rets - Você acredita num aumento da discriminação contra os homossexuais a partir dessa manifestação? A própria proposta de união civil, que já tramita lentamente no Congresso Nacional, estaria definitivamente ameaçada?
Octávio Valente - A discriminação já está internalizada nas pessoas. Estas manifestações se prestam a aumentar e dar visibilidade ao preconceito que já existe.
Rets - Desde 1991, o Pela Vidda organiza encontros nacionais de pessoas vivendo com HIV/Aids. Ao longo desses 12 anos, o que mudou na temática desses eventos?
Octávio Valente - Os temas se mantêm. Mudam apenas o enfoque e a maneira como causam impacto em pessoas desde o começo dos encontros. Alguns continuam a ser fundamentais, como a prevenção e a desinformação. Esses temas evoluíram pouco na sociedade, apesar de todo o trabalho que vem sendo feito. O fato é que as pessoas continuam a ter preconceito, principalmente nas famílias e por parte de empregadores. Por outro lado, evoluíram o ativismo das organizações e a possibilidade de interferência nas políticas públicas.
Rets - E quanto aos temas centrais dos eventos?
Octávio Valente - Os dois últimos encontros foram para repensar o movimento. Avaliamos que ele estava mais reativo do que proativo. Em alguma medida havia dependência financeira do governo, que dificulta o fortalecimento da identidade das ONGs, que perdem a capacidade crítica. É preciso ficar de olho em outros parceiros. Há financiamentos internacionais, por exemplo. O que não pode é as ONGs ficarem limitadas ao Ministério da Saúde. Se um dia cortarem as verbas, elas fecham as portas, e isso é algo que falamos desde o primeiro empréstimo feito.
Outro aspecto importante são as políticas públicas, agora localizadas em planos estaduais e municipais. Se não há pessoas participando desses fóruns para garantir direitos, para defender orçamentos para combate à Aids, se não ocuparmos espaço, outros o farão.
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