Autor original: Fausto Rêgo
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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Ao volante do seu carro, o estudante Gustavo Damasceno atravessava um cruzamento na Av. Vieira Souto, em Ipanema, quando foi surpreendido por outro veículo que participava de um “pega” e avançara o sinal. Nem teve tempo de reagir. Com o impacto, foi lançado para fora do automóvel e teve morte instantânea.
O exemplo foi este como poderiam ter sido tantos outros. Segundo dados oficiais do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), são 20.049 mortos e 358.762 feridos em acidentes de trânsito no Brasil anualmente. Vale dizer que esses números referem-se ao ano 2000 e não representam a realidade – que é bem pior. Isto porque as estatísticas do Denatran não consideram “morte no trânsito” se a vítima não falece no local do acidente. Quando incorporados aqueles que ainda chegam a receber assistência médico-hospitalar, o número estimado de óbitos pode passar de 30 mil.
Além das perdas humanas, é preciso levar em conta o prejuízo financeiro que resulta da violência no trânsito. No início do ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou um estudo que calcula em R$ 5,3 bilhões por ano os custos dos acidentes ocorridos nas áreas urbanas do país. Somam-se aí não apenas as despesas com os veículos e a reabilitação dos feridos, mas também as conseqüências dos congestionamentos e do afastamento, temporário ou definitivo, do trabalho – este, aliás, é responsável por 42,8% do valor total.
Há seis anos, quando foi criado o Código de Trânsito Brasileiro, a expectativa era de que chegaríamos ao dia de hoje com números bem diferentes. E esta reportagem seria então para falar dos avanços obtidos após a nova lei, com a redução do número de vítimas e a conscientização de motoristas e pedestres. Mas não foi bem assim. Após o impacto inicial e o temor das severas multas e punições para os infratores, o caminho para o sucesso, que parecia bem pavimentado, careceu de conservação. A fiscalização foi, pouco a pouco, relaxando, houve troca de acusações sobre a criação de uma “indústria das multas” para “engordar” os cofres públicos e algumas determinações do Código "não pegaram".
Vera Dias Carneiro, que depois de perder o filho em um acidente de automóvel criou a Associação de Vítimas de Acidente de Trânsito, atribui ao poder público a indiferença da população ao Código. E lembra que multas foram anuladas em massa e que a legislação deixou de ser aplicada em muitos casos. Segundo a lei, os motoristas deveriam perder pontos conforme a gravidade das infrações que cometessem. Com 20 pontos, perderiam temporariamente o direito de dirigir. A norma, entretanto, mal saiu do papel. “Os que agiam corretamente acabaram pagando, e isso tudo foi desmoralizando o código”, afirma. “Houve uma redução dos acidentes no início porque havia uma expectativa de punição. Mas a lei se transformou em letra morta”. Para ela, o poder público criou uma enorme expectativa, conseguiu uma grande mobilização, mas jogou todo o esforço fora. Vera condena também a impunidade dos crimes de trânsito. “Eu lido com as famílias das vítimas, elas chegam aqui com uma ansiedade muito grande e eu não posso desanimá-las. Mas a verdade é que não é feita uma investigação completa”.
Crianças no banco de trás
Outra lei que não saiu do papel é a que se refere ao uso do cinto de segurança no banco de trás. A organização não-governamental Criança Segura tem uma preocupação especial com esse ponto, uma vez que as crianças acabam sendo particularmente atingidas. “Elas acabam tendo o mesmo tratamento, que é o de não precisar usar”, lamenta Luciana O’Reilly, coordenadora nacional da entidade. “No táxi, que é um veículo de transporte no banco de trás, é raro ter o cinto traseiro à disposição. Enquanto não houver uma fiscalização forte, não vai acontecer nada”.
Mais do que o cinto, a criança precisa de uma proteção especial que pode lhe dar 71% a mais de chances de escapar com vida de um acidente. “O artigo 64 do Código diz que a criança até 10 anos deve andar atrás. E a resolução do Contran [Conselho Nacional de Trânsito] fala no uso de um sistema de retenção infantil. Só que não diz que sistema é esse”, critica Luíza Batista, coordenadora regional da Criança Segura em Recife (PE). “Então o que acontece é que temos muitos sistemas irregulares”.
O recomendável é que a criança de até 1,45m de altura utilize uma cadeira especial. O problema é que as cadeiras nacionais, mais baratas, ainda assim custam em torno de R$ 200. E não há nada que obrigue os fabricantes a submeterem os produtos à certificação do Inmetro [Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial], portanto não há como ter garantia de que eles atendem às especificações técnicas.
Um passo à frente se deu no Rio de Janeiro, no início do mês, com a aprovação de uma lei estadual que torna obrigatório o uso das cadeirinhas de segurança para o transporte de crianças de até 4 anos. A lei também obriga os fabricantes de automóveis a fornecerem as cadeiras, dentro das especificações estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas.
“Tem de haver incentivo, isenção de impostos. Além disso, se aumentar a procura, os preços tendem a cair. Hoje ainda é caro, a gente entende, mas quantos pais não pagam o mesmo valor por um equipamento de som para o carro?”, indaga Luíza. “É questão de prioridade e também de informação”.
A Criança Segura já formou um grupo de trabalho composto por representantes do Inmetro, do Denatran, do Instituto de Qualidade do Brinquedo, da Associação Brasileira de Puericultura e de alguns fabricantes de cadeiras de segurança. Em reuniões mensais, em São Paulo, têm sido discutidas ações para garantir a segurança das crianças nos automóveis. A certificação obrigatória das cadeirinhas já está na pauta da Câmara Temática de Saúde do Denatran.
Luciana O’Reilly espera que a legislação do Rio impulsione essa proposta. “É preciso entender a criança como um ser especial, pois o trânsito não vai diminuir. Não existe algo que vislumbre que vai ficar melhor. A gente tem estudos que mostram que em 2020 os acidentes de trânsito vão ser a primeira causa de morte no mundo”.
Proibido estacionar
O Denatran já manifestou interesse em se dedicar a dois projetos básicos a partir do próximo ano: um deles é a inspeção veicular, como forma de criar nos motoristas o hábito da manutenção preventiva; o outro é a educação. Daí a importância de garantir a continuidade de projetos como o Rumo à Escola. Criado em 2000, no âmbito do Denatran, trata-se de uma experiência realizada inicialmente em 15 municípios, em escolas públicas e particulares de Ensino Fundamental. O projeto procura trabalhar a cidadania no trânsito de forma transversal, ou seja: cada professor aborda o tema dentro da sua própria disciplina. As escolas recebem material didático, incluindo fita de vídeo, CD-ROM e transparências e os professores recebem treinamento. Com a mudança de governo, o Rumo à Escola está sendo reestruturado. Segundo Francis Barros de Almeida, responsável por esse trabalho durante o período de transição, a continuidade do projeto é certa. “Ele permanece no atual formato até o final deste ano. A idéia é ampliá-lo, mas o modelo ainda não está fechado. Queremos levá-lo também para os alunos do Ensino Médio e Superior e para o maior número possível de municípios”, anuncia.
É fundamental o respeito aos valores éticos e às leis do trânsito. Ou então, como propõe o Instituto da Mobilidade Sustentável Ruaviva, a criação de uma nova cultura. Nesse sentido, o dia 22 de setembro, que abre a Semana Nacional do Trânsito, vem sendo um laboratório para um que as pessoas passem a se locomover de uma maneira mais saudável e ambientalmente correta. A Jornada Na Cidade sem Meu Carro é um evento internacional do qual o Brasil participa pelo terceiro ano consecutivo. Seu objetivo é conduzir a uma reflexão sobre mobilidade sustentável, meio ambiente e intervenção humana, fortalecendo os passeios a pé, o uso das ciclovias e o transporte público. O movimento está crescendo e, desta vez, conta com a adesão de 27 municípios, dos quais 12 são capitais. Os ministérios das Cidades e do Meio Ambiente estão apoiando a iniciativa e vão certificar as cidades participantes.
Os municípios que aderiram à jornada vão, nesse dia, restringir o trânsito em algumas regiões, liberando apenas a passagem de veículos de serviço (como ambulâncias) e de transporte coletivo, numa forma de incentivar o uso racional e solidário dos automóveis. Também serão realizados debates e atividades relacionados ao tema. Algumas cidades estão incorporando o espírito da jornada e indo além. Curitiba, por exemplo, anunciou interesse em realizar o evento mensalmente.
Diretora do Instituto Ruaviva, Liane Born considera impossível discutir a questão do trânsito sem que se discuta mobilidade. “No imaginário das pessoas, quando se fala em trânsito, a imagem que vem é a do veículo. E essa é a menor representação de todas”, afirma. “Segundo dados do Ipea, 81% das pessoas fazem viagens utilizando o transporte público. É preciso adotar medidas restritivas aos automóveis, criar um novo conceito”.
Liane critica o sucateamento do transporte público e o pouco número de ciclovias no país. E adverte que os problemas do trânsito precisam ser compreendidos de forma ampla, envolvendo, por exemplo, aspectos como educação e saúde. “Não dá pra discutir a parte sem ter a visão do todo. Hoje em dia, cerca de 30% dos gastos com saúde vão para as vítimas de acidentes de trânsito. Não podemos esquecer também o achatamento da renda. A maioria das pessoas certamente não deixa de investir na manutenção do seu veículo porque quer, mas sim por falta de condições financeiras. Então tudo tem que ser tratado como uma rede”, recomenda.
Via preferencial
Quando um grave acidente ganha as manchetes de jornais, vêm à tona todas as preocupações em relação ao trânsito. Os dias passam, as emoções também e pouco se faz – até que aconteça um novo acidente, uma nova tragédia. Durante a Semana Nacional do Trânsito, que se encerra no dia 25, os órgãos que compõem o Sistema Nacional de Trânsito em todo o país estarão organizando atividades e campanhas educativas em torno do tema “Dê preferência à vida”. É mais uma oportunidade para que se discuta o problema de maneira séria. Mas a conscientização precisa durar mais, bem mais, do que sete dias.
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