Autor original: Marcelo Medeiros
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Em 1989, o adolescente José Pereira Ferreira quis provar a seus pais que já podia trabalhar. Saiu de casa, em Rio Maria (PA), e em Xinguara recebeu uma proposta que lhe pareceu boa. O dono de uma pensão ofereceu-lhe hospedagem e comida e lhe disse para pagar quando pudesse. Dias depois, um aliciador comprou a dívida de Ferreira e de outros jovens hospedados e os levou a uma fazenda. Lá ficaram sabendo que só poderiam ir embora quando pagassem a dívida e a comida que ganhavam. Ao fazer as contas, Ferreira descobriu que nunca sairia da fazenda, pois o salário não correspondia à sua alimentação.
Pouco depois, decidiu fugir com um colega. Foi perseguido por seguranças e alvejado. O amigo morreu e ele se fingiu de morto. Conseguiu ajuda em outra fazenda e se escondeu durante um tempo.
Seria mais um caso de escravidão entre milhares que existem no Brasil atualmente, principalmente na região amazônica, se não fosse por um detalhe: foi parar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Frente à impunidade do dono da fazenda e de seus seguranças e à omissão do Estado brasileiro, a Comissão Pastoral da Terra e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) apelaram à Organização de Estados Americanos (OEA).
Passados 14 anos, finalmente o governo pagou a Ferreira uma indenização de R$ 52 mil em 18 de setembro. A decisão faz parte do acordo de Solução Amistosa que o governo brasileiro assinou para não ser condenado. O significado dessa assinatura é que pela primeira vez o Estado reconhece a existência de trabalho escravo no país e sua omissão no combate a essa prática.
Em entrevista à Rets, Frei Xavier Passat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da CPT, fala sobre o caso José Pereira Ferreira e sobre a escravidão no Brasil, que deveria ter acabado em 1888, com a Lei Áurea. Para Passat, a escravidão se perpetua por causa do estado de “necessidade absoluta” no interior do país e da impunidade de que desfrutam os donos de fazendas. Ele também comenta o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e a esperança de reversão desse quadro.
Rets - O senhor poderia explicar o caso José Pereira e dizer como ele chegou à OEA?
Xavier Passat - Estamos em setembro de 1989, quando ainda não existia a sensibilização que temos hoje em relação ao trabalho escravo. A CPT já denunciava há tempo casos de escravidão, principalmente no Mato Grosso e no Pará, mas nenhum ganhava repercussão ou era reconhecido. Diversas vezes o Estado chegou a negar a existência dessas práticas no país. Perante essa situação, escolhemos um caso exemplar para levar às instâncias internacionais. Soubemos de José Pereira Ferreira, então um jovem de 17 anos, que ao tentar fugir da fazenda onde era forçado a trabalhar sem pagamento [Fazenda Espírito Santo, no sul do Pará] é perseguido por guardas que atiram para interromper a fuga. Ele e um colega que o acompanhava foram atingidos. Seu amigo morreu, mas José Pereira se fingiu de morto e sobreviveu.
Os seguranças levaram os corpos até a entrada de outra fazenda e foram embora. Lá ele consegue socorro e é internado em um hospital de Sapucaia. José Pereira ficou gravemente ferido em um dos olhos e na mão.
A CPT e o Cejil levam o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que além de possuir uma convenção internacional, é dotada de poder quase judiciário. Ela pode condenar politicamente um país, daí nosso interesse. Já que as vias nacionais não deram resultado, achamos interessante obrigar o Estado a responder pela omissão.
O caso tramitou durante sete anos. Para evitar a condenação e um vexame internacional, o governo oferece em 99 uma Solução Amistosa [espécie de acordo entre as partes]. Até 98, o Brasil não havia reconhecido a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, daí pode ser explicada sua indiferença até então. Quando o [então presidente] Fernando Henrique, que já escreveu muito sobre o assunto [sua tese de doutorado aborda a escravidão no sul do país], reconhece a existência desse problema, interessa ao Estado se livrar da condenação na OEA.
Os peticionários, a CPT e o Cejil aceitam a solução amistosa. Foi então sugerido um prazo de dois meses para resolver as pendências entre as partes, o que não foi cumprido. Em 2001, a Comissão de Direitos Humanos dá 15 dias, mas só em 16 de agosto de 2002 o texto final do acordo é entregue, graças ao empenho do ministro Paulo Sérgio Pinheiro [então secretário Nacional de Direitos Humanos]. O documento sacramentava o acordo entre as partes e o comprometimento de julgar os envolvidos no caso, reparar a vítima e tomar medidas legislativas para sensibilizar a população quanto ao trabalho escravo e fortalecer a repressão a essa prática. Ao chegar perto do fim, outros obstáculos surgiram.
As três datas acertadas para a assinatura da solução foram canceladas, pois houve desentendimento entre os ministérios das Relações Exteriores e da Justiça sobre quem deveria se responsabilizar pelo acordo e a alegação do Ministério da Fazenda de que não haveria espaço no orçamento para o pagamento de R$ 52 mil como indenização. Em 11 de março deste ano, o governo encaminha ao Congresso a Lei 10.706, que prevê os recursos para a indenização, além do Plano de Erradicação do Trabalho Escravo. Em 18 de setembro, a Solução Amistosa é assinada.
Rets - Os responsáveis pelo caso José Pereira foram processados?
Xavier Passat - Nunca. Tentaram indiciar os seguranças por homicídio, mas nem isso foi adiante.
Rets - A reparação financeira é suficiente nesse tipo de caso?
Xavier Passat - O dinheiro é simbólico. O José Pereira "perdeu a vida", se esconde desde 1989. Esses recursos servem para ele adquirir sua terrinha e viver sossegado durante um tempo, mas é pouco perto do que aconteceu.
Rets - O que poderia ser feito para uma melhor reparação?
Xavier Passat - A nós interessa que as vítimas sejam ressarcidas, tenham seus direitos garantidos, recebam indenizações por danos morais, que são coisas raras. Uma medida interessante seria a implementação de políticas de reinserção. A maior resposta, porém, é reconhecer que a situação de miséria atual é o maior fator de estímulo à escravidão. Uma política séria envolve essa necessidade. A curto prazo, a total impunidade também funciona como grande incentivo. O que acontece ao fazendeiro que desrespeita a lei? No máximo é obrigado a liberar os trabalhadores. A maior condenação seria pagar o que deve. Há na Justiça do Trabalho processos com indenizações de até R$ 500 mil, além de bloqueio de contas. É preciso que medidas como a perda de terras, o corte de financiamentos e a prisão sejam efetivadas.
Rets - Qual o significado da assinatura desse acordo?
Xavier Passat - É importante. Este governo assume a culpa de todos os outros. Mas na verdade a responsabilidade é do Estado, que durante décadas negou responsabilidade em relação ao trabalho escravo. Hoje ele reconhece o crime e a omissão. É uma forma de reafirmar a vontade política de tratar a erradicação da escravidão como prioridade. A assinatura possui valor internacional. O Brasil ainda não é um exemplo, mas tem se esforçado no combate. A escravidão não é uma realidade apenas brasileira, há diversos casos na Índia e na África. Por aqui temos 25, 30 mil casos.
É importante porque vamos poder insistir na solução de problemas que a jurisdição nacional foi incompetente para resolver. Só no ano passado havia nos tribunais da OEA cem casos relacionados à impunidade no Brasil.
Rets - Em que regiões a escravidão é mais comum?
Xavier Passat - Na região amazônica, onde é conhecido o grande número de denúncias, principalmente no Pará e no Mato Grosso. De janeiro a 18 de setembro, recebemos 204 casos de fazendas que escravizavam 7.266 trabalhadores. Desses, 110 foram investigados de alguma forma e 3.862 pessoas foram resgatadas. Dos 204 casos, 141 estavam no Pará, onde havia 1.463 escravos.
Fato novo foi a descoberta de três casos monumentais na Bahia, onde foram resgatadas 1.022 pessoas, quando geralmente são de 20 a 40. Isso deu a esse estado o segundo posto no ranking, à frente de Mato Grosso e Maranhão. Mas em número de denúncias o Maranhão é o maior.
Rets - Em que tipo de atividade econômica essas pessoas estão envolvidas?
Xavier Passat - Quase que exclusivamente na pecuária. Geralmente essas fazendas estão em região de fronteira de florestas e por isso é preciso abrir espaço para o pasto. Um quarto dos empregados é encarregado de desmatar a área e metade faz a manutenção dos pastos, tarefa que envolve a construção de cercas, o plantio de capim etc. Outras atividades comuns são a produção de carvão vegetal, bastante comum em Minas Gerais, há dez anos, mas que agora ruma para o norte, no Maranhão e no Pará, a fim de alimentar a indústria de Carajás. Há casos também no plantio de soja e pimenta-do-reino. Aqueles casos da Bahia eram em plantações de café e cana. Essas culturas também possuem escravos em São Paulo e no Espírito Santo, assim como na citricultura.
Rets - É mais comum encontrar casos de escravidão em áreas rurais, mas recentemente surgiram denúncias de casos em grandes cidades. A escravidão urbana tende a crescer?
Xavier Passat - Na verdade isso é resultado da onda de sensibilização, que evidencia coisas que já existiam. Antes havia riscos de denunciar. Mas essa prática é presente em todas as capitais do mundo. Sou francês e sei de casos em Paris e Londres. Geralmente é um sistema de exploração de imigrantes feito por outros imigrantes. Os primeiros a chegarem chamam outros e acabam se tornando “gatos” [pessoas que atraem outras para serem escravas, prometendo vantagens] de seus compatriotas. Em São Paulo o mesmo acontece com bolivianos.
Há outro tipo de escravidão, mas em menor proporção e muito pouco divulgado: a escravidão doméstica. Ela acontece principalmente no meio diplomático ou no meio dos grandes executivos, que precisam viajar pelo mundo constantemente. Essas pessoas levam seus empregados para as cidades para as quais precisam se mudar e prometem melhores salários, educação etc., mas os mantêm como escravos. Os empregados não podem voltar para casa, pois estão longe dela, dependentes dos patrões e endividados. A OIT poderia investigar esses casos em Genebra, que é uma cidade com muitos diplomatas. Em Paris descobriram vários casos, o que levou a formarem uma CPI para apurar as denúncias.
Rets - O Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo foi lançado em março deste ano. Já se passaram seis meses desde seu lançamento. Qual a sua avaliação?
Xavier Passat - O plano é excelente em seu teor, pois corresponde à proposta da comissão criada em 2002 para discutir o assunto. Essa comissão foi criada por causa do alerta provocado pela explosão de casos e a repercussão internacional deles. O [jornal norte-americano] New York Times fez uma boa matéria sobre escravidão no ano passado e a OIT cobrou soluções. O governo avaliou que o estrago não valeria a pena.
Trabalhamos com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Polícia Federal, o Ministério do Trabalho e outras entidades. Elaboramos uma proposta, que foi apresentada no III Fórum Social Mundial, na oficina mais concorrida, com dois mil participantes. Em Porto Alegre, o Nilmário Miranda, novo secretário Nacional de Direitos Humanos, anunciou prioridade no combate ao trabalho escravo. O governo não fez nada mais do que referendar nosso trabalho, o que nos encheu de satisfação. Mas tenho reticências quanto à efetivação dessa proposta nesse contexto de restrições orçamentárias.
Rets - Pelo que o senhor afirma, na teoria o plano é muito bom. Mas como ele está na prática?
Xavier Passat - Há pontos positivos e negativos. Os positivos são a firmeza policial e a vontade política, que não se desmentiram. O Ministério do Trabalho duplicou a fiscalização. Só neste ano já foram feitas mais investidas do que em 2002. O Ministério Público do Trabalho tem articulado forças-tarefas para unificar os processos. São vários os processos, com grande garra para resolver essa situação. O Ministério Público Federal também criou força-tarefa, mas essas atitudes já geram reações, como ameaças a um juiz de Palmas (TO), que teve de se mudar para Brasília por causa das ameaças sofridas.
Como ponto negativo posso apontar a falta de definição clara da Justiça Federal sobre a competência de julgamento de casos de trabalho escravo, um problema antigo. A jurisprudência seria estadual, apesar de o Código Penal estabelecer o contrário. Estamos aguardando uma solução definitiva, para que os trabalhadores não fiquem à mercê de poderosos.
É preciso fazer os fazendeiros pagarem multas, antes irrisórias e de rara execução. O plano aumenta o valor, mas é difícil dizer se vai funcionar. Hoje os trabalhadores têm mais disposição para denunciar, pois sabem da existência de uma CPT, da Polícia Federal, do Grupo Móvel [unidade do Ministério Público do Trabalho especializada na repressão ao trabalho forçado]. Mas a falta de punição leva à continuidade dessa prática. Como explicar mais de mil casos de escravidão na Bahia? Geralmente sabíamos de três ou quatro casos por ano, todos no Tocantins ou com trabalhadores daqui levados para outros estados. Neste ano, registramos 19 só no Tocantins. Como explicar isso? Os fazendeiros se acham impunes. O maior problema é a impunidade.
Rets - Quando lançou o plano, o presidente Lula disse que nenhum fiscal do Ministério do Trabalho ou qualquer outra pessoa responsável por investigações teria sua atividade cerceada. Qual a situação da fiscalização, hoje?
Xavier Passat - Esses casos de cerceamento de trabalho se referem ao governo passado.Lembra do Inocêncio Oliveira, que foi acusado de escravizar trabalhadores em sua fazenda? Quando o fiscal quis publicar a denúncia, veio alguém para dizer que não existia esse tipo de coisa por lá. Até o procurador geral engavetou o processo e o classificou como sigiloso. Até agora não tivemos conhecimento de nenhum caso de intimidação de fiscais.
Queremos ver se os poderosos vão até o fim da ação penal. Não basta regular a fiscalização de forma passageira, é preciso obrigá-los a pagar multas e irem presos. Se ficar como está, tudo volta daqui a um tempo.
Rets - Pelo que o senhor tem falado, o maior problema dessa questão é a impunidade.
Xavier Passat - Até pouco tempo atrás, faltava sensibilidade e vontade política por parte do Judiciário. Todas as melhoras que mencionei não precisaram de novas leis ou recursos financeiros a mais para serem implementadas. Tudo o que foi feito foi com base na lei já existente e isso já poderia acontecer há anos.
Outro lado é a insuficiência legislativa: as multas são baixas, os acusados aguardam o processo em liberdade mesmo quando há flagrante. Recentemente publicaram uma lista de pessoas acusadas de se beneficiar de mão-de-obra escrava. Acho uma ótima iniciativa. É preciso mostrar a cara na lista suja.
No Plano Nacional, é previsto o confisco de terras onde forem encontrados escravos, mas o projeto de lei que regulamenta essa ação ainda está em trâmite. E falta também uma melhor definição do que é exploração do trabalho escravo.
Rets - O que falta a essa definição?
Xavier Passat - É preciso evidenciar as configurações: não basta só o “gato”, que maltrata as pessoas, mas também a dona da pensão, que não deixa os inquilinos saírem; o dono do armazém, que cobra preços absurdos pela comida para manter o endividamento; o dono do ônibus, que leva essas pessoas de suas cidades para as fazendas; a polícia da propriedade. Todos estão envolvidos de alguma forma, seja por omissão, seja por ameaça. É preciso melhoria na legislação e na competência legal. Isso teria um efeito mais rápido.
Rets - O número de casos de escravidão tem aumentado bastante nos últimos anos. Há alguma relação entre momentos de crise econômica como o atual e aumentos no número de casos?
Xavier Passat - Não diretamente, mas por princípio, sim. O escravo é aquele que não tem nada para pôr na panela. Essa é a presa preferencial. O “gato” oferece um dinheiro na hora, coloca na mão do trabalhador e diz que dá mais quando chegar ao novo emprego. Todos vão, são pessoas sem perspectiva.
Rets - Mesmo sabendo da existência de escravidão, por que as pessoas continuam aceitando esse tipo de proposta?
Xavier Passat - Necessidade absoluta. Muitas vezes elas foram expulsas de suas terras, ou seus pais ou avós foram. Aí vão para a cidade, onde não encontram trabalho, e esse desemprego as leva para os lugares mais remotos em busca de algum sustento.
Rets - O senhor vê alguma solução a curto prazo?
Xavier Passat - A solução é a punição. Mas só ela não resolve, precisamos de alternativas, senão surgem novas formas de escravidão disfarçada como falsas cooperativas. É bom lembrar que a OIT já possui uma ação firme nesse assunto. Há um acordo de cooperação técnica cujo primeiro país a participar foi o Brasil, por causa da sua situação e da vontade política do governo.
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