Autor original: Graciela Baroni Selaimen
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
![]() Paulo Duarte/Rits | ![]() |
“É necessário um debate amplo para fortalecer o relacionamento entre a ONU e a sociedade civil. Vivemos hoje uma nova ordem global, muito mais complexa do que quando a ONU foi criada. Hoje, os problemas vão além das fronteiras nacionais, os conflitos mudaram de natureza: desafios como a Aids, o narcotráfico e o terrorismo não conhecem limites territoriais. Ao mesmo tempo, vemos o surgimento de redes que fortalecem a construção da sociedade civil planetária e devemos nos perguntar: o que significa democracia no âmbito planetário? (...) Chegamos ao momento em que se faz necessário um novo pacto que inclua não apenas governos, mas os povos do mundo, as sociedades. Como se faz isso? Com que mecanismos? (...) As Nações Unidas têm tido uma função vital no fortalecimento da governança global por meio da promoção constante da participação da sociedade civil nos processos de diálogo e deliberação que levam a novas formas de regulação política. Entretanto há um sentimento crescente de que alguns processos já se esgotaram. (...) A contribuição cidadã para a governança global deve ser mais bem compreendida e valorizada. Devem-se incluir maior consistência nas regras de engajamento com a sociedade civil. Questões e desafios de diferentes ordens devem ser dirigidos às Nações Unidas para que os relacione e associe à vibrante força de energia representada pela participação cidadã, fornecendo à sociedade civil o respeito e o espaço que ela merece – e, para isso, repetimos as palavras do secretário-geral da ONU, Kofi Annan: são necessárias medidas audazes e pragmáticas”.
Foi com este discurso que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso abriu o evento “Sociedade Civil, Naciones Unidas y Gobernanza Global – Encuentro Latino Americano”, para um grupo de representantes de organizações da sociedade civil e de algumas agências e entidades que fazem parte do sistema das Nações Unidas. O encontro foi realizado pelo CEBRI e pela Comunitas, no Rio de Janeiro, no mesmo mês de setembro em que o mundo assistiu ao “fracasso” da reunião da OMC em Cancún, a Kofi Annan tocando atabaques com Gilberto Gil, ao presidente Lula chamando os países-membros das Nações Unidas ao combate à fome e à miséria e, finalizando, à frustração e indignação de ONGs e movimentos sociais na PrepCom 3 para a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, em Genebra (ocorrida de 15 a 26). Setembro agitado.
Fernando Henrique tem razão quando afirma que processos se esgotaram. A revisão geral das relações ONU/sociedade civil é um dos desafios que o ex-presidente enfrenta, à frente do Painel de Alto Nível sobre a ONU e a Sociedade Civil. A revisão proposta pelas Nações Unidas deve ser realizada ao longo de um ano, e este processo se iniciou em junho, durante reunião em Nova Iorque, quando foi organizado um processo de consulta mundial a governos, sociedade civil e à própria ONU, com o objetivo de apontar caminhos para que se revigore a relação entre estes atores no novo contexto de governança global (ou de déficit de governança?).
O processo de consulta à sociedade civil será feito por meio de encontros regionais (o encontro para América Latina e Caribe foi o primeiro. Haverá outros: em Bangcoc, para a Ásia; Amã, para o Oriente Médio; e Joanesburgo, para a África) e através de questionários respondidos pelas organizações da sociedade civil. Há um questionário eletrônico disponível no site do Painel (veja endereço ao lado), que pode ser preenchido por qualquer pessoa que queira enviar sugestões e opiniões. Também foram enviados questionários para cem pessoas atuantes em organizações da sociedade civil, com questões mais aprofundadas. Estas respostas também estarão disponíveis para leitura, no mesmo site.
O que pensam as organizações
Entre as organizações da sociedade civil brasileiras presentes à consulta do grupo de FHC estavam o Ibase, o Instituto Akatu, o CDI, a Pastoral da Criança, o CELIM, a Fundação Avina, o IDEC, o Gife, o Iets, a Fundação Kellogg e a Rits. Valdemar de Oliveira Neto (o Maneto), da Fundação Avina, afirma que o debate é positivo, embora chegue atrasado. “Essa interlocução entre a ONU e a sociedade civil foi se dando ao longo do tempo, a partir da construção de um espaço pelas próprias ONGs, que foram forçando sua presença nas discussões da ONU – que promove esse diálogo agora, já a reboque dos acontecimentos. Devemos estar atentos à possibilidade de que esta discussão não venha refletir uma reação dos governos no sentido de mitigar o impacto da influência das organizações da sociedade civil nos vários espaços”.
Impacto foi o que não faltou em Cancún, na reunião da OMC realizada de 10 a 14 de setembro. Fátima Melo, assessora da área de Relações Internacionais da Fase e secretária-executiva da Rebrip (Rede Brasileira pela Integração dos Povos), esteve atuante em Cancún e afirma, a partir dos resultados da reunião e da interferência das organizações da sociedade civil neste processo: “As ONGs começam a entrar de fato no núcleo de poder. Começam a participar do 'núcleo duro' dos debates. Isso é resultado do aprimoramento das relações entre sociedade civil e Nações Unidas, iniciado na ECO 92 e estendido por todo o Ciclo Social dos anos 90, apesar da frustração com relação aos resultados práticos destas conferências, que produziram documentos com metas e determinações cuja implementação não existe”.
Fátima ressalta que é muito importante a abertura de espaços por parte da sociedade civil organizada junto às delegações de seus governos, para que possam interferir nos processos preparatórios e nas deliberações propriamente ditas. Ela explica que em Cancún se inaugurou uma interação com a delegação brasileira que trouxe resultados inéditos e ressalta que a OMC não pode ser comparada a outras conferências, por ter uma dinâmica própria: “A reunião da OMC tem repercussões diferentes, a OMC é um organismo multilateral e tem mais poder que outras reuniões da ONU, ela pode promover retaliações comerciais. É uma pena que os governos não vejam toda a agenda social da ONU como algo estratégico, como vêem a OMC.
Iara Pietricovsky, do Inesc, em artigo* publicado recentemente pelo Vitae Civilis, afirma que a sociedade civil organizada tem um papel fundamental na “defesa intransigente dos acordos já conquistados”, referindo-se aos resultados das Conferências do Ciclo Social da ONU. Para a antropóloga, “a ação das ONGs e movimentos sociais deve ser para dentro e para fora. Articular nacional e internacionalmente é fundamental como estratégia política”. Iara chama a atenção para o papel da ONU no contexto político global, num momento em que o multilateralismo precisa ser defendido e reforçado como mecanismo de construção de uma nova governança global.
A defesa do multilateralismo valida a defesa das Nações Unidas e seu fortalecimento como alternativa ao imperialismo, na opinião de Cândido Grzybowski, diretor geral do Ibase. Para ele, a discussão sobre as relações ONU/sociedade civil é fruto de uma pressão das organizações que, mesmo reconhecendo avanços a partir dos anos 90, são críticas ao caráter pouco democrático das Nações Unidas. "Apesar de existir o ECOSOC [Conselho Econômico e Social das Nações Unidas] e das possibilidades de participação das organizações da sociedade civil nas conferências da ONU, faltam um regulamento e regras claras para esta participação, que garantam a possibilidade de interferência das ONGs, associações e movimentos sociais". Cândido ressalta a importância de que as instâncias de consulta à sociedade civil sejam mais regulares e seus resultados respeitados e levados em conta.
Grzybowski faz críticas ao modelo de consulta implementado pelo grupo de Fernando Henrique Cardoso, que considera como "sociedade civil" também as empresas, os parlamentos e os governos locais. "Há um risco de que este Painel possa vir a dar em nada, pois seu mandato é muito confuso. Deve-se pensar em formas diferenciadas de consulta para distintos atores – essa foi uma das sugestões encaminhadas na reunião onde estivemos presentes. Também é importante ressaltar que a sociedade civil organizada também é composta por redes e movimentos sociais, que não estavam representados na reunião". Cândido lembra que a consulta realizada no Rio de Janeiro foi nos mesmos dias da Assembléia da Abong, em São Paulo, e afirma: "Foi uma reunião quase formal e péssima a representação da sociedade civil organizada do Brasil. As entidades convidadas não expressavam o que é de fato, hoje, a sociedade civil brasileira. Atores-chave que poderiam enriquecer o debate ficaram de fora – faltaram outros atores expressivos, movimentos sociais e sindicatos".
Apesar das críticas, Cândido se disse bem impressionado pelo documento preparado por FHC para a reunião, com posições interessantes, e avalia positivamente a atitude do ex-presidente durante o evento – o que quebrou, de certa forma, o formalismo da consulta. "Quando eu mencionei a idéia de constituição de um parlamento global, a resposta de Cardoso foi: 'por que não?'. Devemos pensar em perspectiva, para os próximos cem anos". Para o diretor geral do Ibase, a visão de Fernando Henrique é uma visão de estadista.
Diálogo local
Maneto também percebe no diálogo local entre governos e organizações da sociedade civil uma oportunidade de avanço. Apesar de entender que pode haver uma demanda da ONU para definir de forma conservadora os espaços das organizações da sociedade civil em seus processos, Maneto vê como positiva a maneira como se abre o espaço para o diálogo – através do processo de consulta. “A ONU começa a perceber a importância da sociedade civil e o seu fortalecimento como um tema em cima do qual pode articular um conjunto de políticas. Isso é muito positivo – que se promova a discussão entre os governos dos Estados que compõem a ONU sobre o papel da sociedade civil, favorecendo o diálogo local dos governos com as organizações da sociedade civil, em seus países”.
Rodrigo Baggio, do CDI, também acredita na possibilidade de abertura e diálogo. “É muito importante o estudo de formas de diálogo entre a sociedade civil e a ONU – e que a partir daí se estabeleçam pontes entre as organizações e os governos. Este é um movimento bastante interessante e pode ser um fator significativo num processo de reformulação das Nações Unidas”. Baggio cita boas experiências que o CDI teve com a Unesco e com o Unicef e crê que já existe uma cultura de parceria dentro do sistema das Nações Unidas que pode se estender para toda a ONU.
Para Helio Mattar, do Instituto Akatu, "o encontro mostrou as Nações Unidas com uma percepção clara do posicionamento que a sociedade civil vem tendo no desenvolvimento da sociedade global e coloca uma extraordinária oportunidade de convergência entre os interesses da sociedade civil e os problemas que as Nações Unidas vêm enfrentando. Essa convergência representa um enorme potencial de fortalecimento das Nações Unidas, seja pelo papel que a sociedade civil tem junto aos Estados nacionais na promoção de determinadas questões, como também por um redirecionamento dessas questões junto às Nações Unidas, facilitando o posicionamento dos programas da ONU, especialmente no interesse das populações menos privilegiadas do mundo".
E o lado prático?
Apesar do discurso do presidente Lula na ONU; apesar do discurso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em nome da ONU, apesar da bem-sucedida interferência das ONGs na reunião da OMC, quando se trata de participação em Conferência Mundial das Nações Unidas, as organizações da sociedade civil estão saindo frustradas – e muito.
O processo preparatório para a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (cuja primeira fase acontece em dezembro de 2003, em Genebra, com a segunda marcada para novembro de 2005, na Tunísia) é desolador, na perspectiva da sociedade civil. A começar pela invisibilidade, pois desta Cúpula quase não se fala. Ou porque o tema parece pouco palatável, ou por não interessar em absoluto aos grandes veículos de comunicação, o fato é que a Cúpula em que se discutirão assuntos ligados à liberdade de expressão, à governança da Internet, à segurança e ao controle da informação, entre tantos outros cruciais (quem não percebe isso hoje perceberá em breve), não é notícia. O que dificulta bastante a efetiva participação da sociedade neste debate.
Quando as entidades civis envolvidas com o tema e atentas a este processo chegam às vias de fato – em Genebra –, encontram portas fechadas, desorganização e falta de clareza e transparência em relação a regras e procedimentos de participação, difícil acesso aos documentos oficiais para que possam discuti-los com o mínimo de antecedência, entre outros entreveros.
Na prática, nas três PrepCom realizadas ao longo do último ano, o cenário tem sido esse – com nítidos retrocessos para a sociedade civil organizada, quanto mais se aproxima a Cúpula. Entretanto o setor privado – presente em peso e confortável em suas relações com delegações governamentais (exemplos como as delegações dos EUA e da Finlândia, evidentemente influenciadas pela Microsoft e pela Nokia) – não tem do que reclamar.
Paulo Lima, diretor executivo da Rits, conta que em Genebra, durante a conturbada terceira reunião preparatória da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (de 15 a 26 de setembro), pôde-se constatar que, do discurso à prática, há que se avançar muito. "Fomos convidados a nos retirar de várias reuniões fechadas sobre os principais temas da Declaração de Princípios e do Plano de Ação. A sociedade civil não teve consideradas suas contribuições em conteúdos e temas e os documentos de trabalho, no momento, não representam nossas preocupações. A reforma da ONU é chave para processos como esse não se tornarem a teatralização de uma interlocução que não existe". Para quem quiser entender melhor como foi este processo, vale uma visita ao portal Cidadania na Internet (veja endereço ao lado), onde foi feita uma cobertura bastante intensiva do evento.
A consulta está aberta. A Cúpula bate à porta. Resta torcer para que tenha peso a afirmação de Kofi Annan, sobre a revitalização da relação entre sociedade civil e ONU: é preciso sermos audaciosos – e também pragmáticos. Às ONGs não costuma faltar audácia – e o pragmatismo aparece, sempre que possível. Bola com a ONU.
* Iara Pietricovsky, “Qual o futuro dos acordos resultantes do Ciclo Social da ONU, Boletim VC Informa (veja endereço ao lado).
Graciela Selaimen
Colaborou Fausto Rêgo
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