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ONGs republicanas e democráticas em um novo cenário político

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original:

Silvio Caccia Bava*

(...) Creio que o primeiro passo para poder discutir o tema da relação da sociedade civil com o Estado, nesses novos marcos de democratização na América Latina, é recuperar a trajetória histórica que nós tivemos desde os regimes autoritários, em nossos países, de construção de grupos de cidadãos que se organizam na defesa de direitos. Por intermédio desses grupos, articulou-se a sociedade civil, criaram-se os movimentos e ampliaram-se os espaços públicos de participação, tão valorizados neste momento entre nós.

Recuperar essa trajetória significa, num primeiro momento, reconhecer que houve um esforço molecular na sociedade, no sentido da organização por bairro, por fábrica, por regiões, onde grupos de operários e de associações de moradores, onde a Teologia da Libertação e as comunidades de base tiveram um papel fundamental. No momento seguinte, a partir de meados dos anos 1980, nós vamos ver o início da construção de redes de entidades da sociedade civil – redes de ONGs, redes de movimentos, redes, enfim, que acabam tendo um papel cada vez mais importante e que vão articular, por sua vez, espaços internacionais e nacionais, gerando, por exemplo, esta mesa de articulação de associações nacionais de ONGs da América Latina e gerando a própria possibilidade do Fórum Social Mundial. Nós não podemos deixar de reconhecer que o Fórum não nasceu há três anos: o Fórum nasceu de um esforço de militância, de um esforço de mobilização da sociedade civil, que já conta com décadas entre nós.

Inicialmente, falarei de qual é o papel que eu compreendo que estas redes estão assumindo, com uma importância crescente neste novo cenário. Para que servem essas redes de ONGs, para que servem essas associações nacionais, para que servem essas articulações internacionais? Eu diria que o primeiro ponto é construir uma mediação entre os organismos de base – que se acumularam nesse passado de organização da sociedade civil – e o mundo da política. É um trabalho de mediação; é um trabalho que tem dois sentidos fundamentais.

O primeiro, é o de politizar o social. Isso quer dizer que cada um dos moradores dessas regiões, onde atuam as ONGs e as redes de movimentos, encaram as suas necessidades cotidianas como demandas. Politizar o social significa reconhecer que essas demandas só podem ser respondidas por políticas públicas. E essas demandas, então, precisam se transformar em questões não mais de reivindicação, mas em questão de disputa de alternativas de políticas públicas.

O segundo ponto fundamental para identificar o papel dessas redes é a socialização da política, em um momento de democratização dos nossos países. No entanto, a transição é ainda limitada, muitas vezes conservadora, para tornar um indivíduo cidadão, torná-lo capaz de ser ativo em termos da construção de seus direitos, capaz de se incorporar a coletivos e, por meio desses coletivos, disputar uma transformação social, disputar a transformação das políticas públicas.

Isso é atribuir à cidadania o papel do exercício da política, é não reservar o exercício da cidadania apenas à esfera dos partidos, à esfera do Estado, mas perceber que essa cidadania se permeia, se infiltra, se articula em todo o meio social, em todo o tecido social, e é justamente essa articulação no tecido social que permite a transformação de cada indivíduo, de um cidadão passivo, concebido pelos regimes autoritários como um cidadão de segunda categoria, em um cidadão pleno, em um cidadão ativo, em um cidadão capaz de se articular coletivamente e fazer valer os seus direitos. Essas duas premissas dão a identidade dessas redes, dão a identidade e a perspectiva do trabalho social que a Mesa de Articulação de Associações Nacionais, assim como a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e as redes temáticas têm desenvolvido. A pergunta é: quais são os objetivos deste trabalho? Para que ele serve? Por que essas redes, essas pessoas, se comprometem, dedicam o seu tempo, se mobilizam, sacrificam muitas vezes outros afazeres e responsabilidades? Eu vejo dois objetivos fundamentais dessa construção de cidadania, dessa construção de novos espaços públicos, da atuação das redes.

Um dos objetivos é a democratização da democracia. Significa reconhecer que nós vivemos em democracias mais formais do que efetivas, que as democracias na América Latina não conseguiram socializar o poder, que as democracias da América Latina, muitas vezes, ainda permanecem sob o controle das elites e que precisam ainda de pressões da sociedade para se alargar, para se ampliar, para estender os seus direitos, para envolver o conjunto da sociedade.

O outro objetivo é a redistribuição da riqueza. A democratização só será substantiva se construir mecanismos, políticas públicas, capazes de operar a redistribuição da riqueza. Nossos países passaram a década de 1990 e entraram no século XXI mantendo um padrão de acumulação que continua beneficiando apenas as elites. Mesmo aqueles, como o Chile, que conseguiram manter índices de crescimento mais significativos, não conseguiram reduzir a diferença entre ricos e pobres. Mas o fato é que, no conjunto dos países da América Latina, assim como em outras regiões do mundo, o que se verificou foi um empobrecimento generalizado, uma verdadeira regressão no padrão de vida da população. Não há, na América Latina, indicadores que possam demonstrar que no passado recente houve em qualquer dos seus países redistribuição da riqueza. A América Latina é o continente mais desigual entre todos os continentes. O continente que, por excelência, tem a marca da pobreza e da riqueza extrema.

Se nós observarmos os indicadores das Nações Unidas, nos anos 1960, a diferença entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres do planeta era de 30 para 1. Em 1990, essa diferença chega, de uma maneira geral no mundo, a 82 para 1. Na América Latina, ela é mais acentuada, ela tem a marca dos processos impostos por uma elite que cada vez mais tem dificuldades de se sustentar, em função dos processos sociais aos quais eu vou me referir.

*Silvio Caccia Bava é sociólogo e diretor do Instituto Pólis. O texto completo está disponível para download ao lado e faz parte do livro "Governo e sociedade civil: um debate sobre espaços públicos democráticos", publicado pela Abong, com base no seminário “Democratizar a democracia", realizado durante o Fórum Social Mundial 2003”.





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