Autor original: Marcelo Medeiros
Seção original: Os mais interessantes e ativos projetos do Terceiro Setor
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O dramaturgo e poeta alemão Bertold Brecht afirmava que o teatro e a poesia eram ferramentas para a liberdade de espírito. Quase cinqüenta anos depois de sua morte, um projeto leva essas afirmações ao pé da letra. Por iniciativa de Jorge Spinola, diretor teatral e funcionário da Fundação Dr. Manoel Pedro Pimentel (Funap), órgão estadual de amparo a presos, há cinco anos pessoas em privação de liberdade de São Paulo encenam peças para os demais detentos e, assim, discutem a sociedade e aumentam sua auto-estima, apesar das reticências da direção carcerária.
Em 1998, Spinola, que já trabalhava como educador em prisões, decidiu pôr em prática sua experiência com artes cênicas nos presídios de São Paulo inspirado no trabalho de Ruth Escobar, uma das pioneiras do teatro popular brasileiro. A primeira tentativa, em Guarulhos, não deu certo por causa do veto da direção da instituição e da falta de apoio dos funcionários. “Há dez anos, os presídios eram muito fechados para esse tipo de iniciativa”, lembra. Acabou, por decisão da Funap, no Centro de Observação Criminológica (COC), uma das unidades do complexo do Carandiru. Ficou por lá quatro anos e montou três apresentações: “Auto da Compadecida”, “A pena e a lei” (ambas de Ariano Suassuna) e “O Rei da Vela” (de Oswald de Andrade). Agora monta uma versão de “Homens de Papel”, de Plínio Marcos, chamada “Mulheres de Papel”, na Penitenciária Feminina do Tatuapé. As peças não são totalmente adaptadas para o contexto carcerário, mas acabam incorporando alguns elementos do lugar. A escolha dos textos também leva em conta a falta de recursos das penitenciárias, pois nenhuma precisa de figurinos elaborados.
O começo foi difícil. Era preciso enfrentar as regras da direção e o código interno da lugar, muito preconceituoso. “Foi um tormento. O primeiro grupo era conhecido internamente como as ‘meninas do balé’ ”, lamenta Spinola. Do outro lado, o problema era a censura. A idéia original era encenar alguma obra do filósofo francês Jean-Paul Sartre, que foi vetada por seu conteúdo político. A solução encontrada foi utilizar o texto de Suassuna, O Auto da Compadecida, cujas críticas sociais são mais sutis e disfarçadas pelo humor. Em meio às aventuras dos protagonistas Chicó e João Grilo, os presidiários criticavam a distribuição de renda, a Igreja e a pobreza em que viviam, tudo em forma de comédia.
A primeira encenação, feita no pátio central do Carandiru, agradou aos demais detentos e os atores ganharam reconhecimento no presídio ao longo dos meses em que ficaram em cartaz, pois levavam diversão aos demais. O sucesso foi tão grande que pouco tempo depois os presos foram autorizados a passar pela porta de saída pela primeira vez na história do presídio e se apresentarem do outro lado dos muros. As detentas da Penitenciária do Butantã e o público do Tuca (teatro da PUC-SP), do teatro Sérgio Cardoso e até de casas de Campinas e Sorocaba puderam assistir às apresentações. Em artigo no jornal catarinense A Notícia, de 13 de julho de 1999, Ariano Suasssuna disse ter ficado emocionado com a encenação. “Fiquei contente ao ver que minha peça tinha levado um pouco de alegria (e talvez alguns momentos de reflexão) tanto aos atores que a encenaram quanto ao público de detentos que assistiu ao espetáculo”, escreveu o pernambucano.
Quanto aos diretores da penitenciária, lentamente foram “amolecendo”, apesar do diretor teatral nunca os ter questionado, pois já havia sido avisado das dificuldades que teria de enfrentar. Depois da primeira apresentação, nunca mais foi procurado para mudar o conteúdo das peças. Melhor: os diretores acompanhavam ensaios e apresentações.
A garantia de liberdade de expressão fez com que Spinola ousasse um pouco mais no ano seguinte. Decidiu montar “A pena e a lei”, também de Suassuna e também uma comédia com elementos nordestinos, mas com críticas mais fortes à sociedade. Essa peça, como a anterior, foi apresentada dentro e fora do Carandiru.
Em 2001 foi a vez de “O Rei da Vela”, cujo texto é ainda mais crítico. A peça se passa em São Paulo e discute a sociedade de consumo, dependência do capital externo e os industriais brasileiros. O diretor teatral José Celso Martinez, que criou polêmica com sua encenação da peça nos anos 60, foi chamado para assistir ao espetáculo. De acordo com Spinola, ao fim da apresentação Martinez subiu no palco, abraçou os atores e declarou ter sido aquele o melhor espetáculo que já havia assistido. Emoções à parte, a peça fez sucesso na casa de detenção, assim como suas antecessoras e atraiu mais pessoas para a oficina de teatro.
Envolvimento
A participação é aberta a qualquer pessoa interessada. A procura, na maioria das vezes, é para mudar a rotina da prisão. Não há testes seletivos, apenas jogos inspirados na metodologia do Teatro do Oprimido, criado pelo dramaturgo Augusto Boal nos anos 70, cujo objetivo é estimular a participação da platéia no desenrolar do espetáculo e assim quebrar barreiras entre público e atores. Essas brincadeiras acabam fazendo uma “seleção natural”, pois muitos não conseguem continuar por insegurança ou falta de talento mesmo. “Há muita desconfiança no começo, os presos geralmente têm pouca cultura, raramente conhecem os textos”, diz Spinola. Mas isso não impede que surjam talentos na prisão. Depois de definido o grupo, com 12 a 20 integrantes, o diretor forma uma roda de diálogo com os participantes para discutir o texto e construir os personagens. Há também ao menos dois atores voluntários que o ajudam na montagem do espetáculo.
O método utilizado nos ensaios é considerado rígido pelos alunos, mas isso não chega a ser uma desvantagem para eles. “No ano passado o Jorge era muito mais ríspido, mas quem começou naquela época aprendeu mais”, declarou Carla Menezes, uma das atrizes que participa da oficina na Penitenciária do Tatuapé em entrevista ao Centro de Mídia Independente (CMI). Depois da desativação do Carandiru no ano passado, o projeto foi transferido para o presídio feminino. Apesar da crítica, Spinola afirma que a rispidez é necessária para manter a disciplina e conseguir fazer os participantes desabafarem e conseguirem entrar nos personagens. “É o mesmo trabalho que faço do lado de fora e isso as atrai”, defende-se.
O diretor, entretanto, percebe diferenças entre a atuação de homens e mulheres. Para ele, os homens são menos afetivos e mais técnicos. Já elas oscilam mais o humor, se abalam com facilidade e isso reflete nas apresentações e ensaios. Por outro lado, quando há identificação com o personagem, “entregam-se” totalmente.
A melhora da auto-estima dos participantes da oficina é notável. "Nos ensaios suas opiniões são relevantes, elas encontram espaço para discutir suas dúvidas e problemas, o que acaba diminuindo a relação agressiva que elas estabelecem com tudo, inclusive consigo mesmas. Pois no teatro é fundamental perceber e respeitar os limites do outro; pois teatro não se faz sozinho, há sempre alguém trabalhando junto com você", diz Vicente Concilio, um dos atores voluntários que colaboram na montagem. A detenta Maria Cristina, em depoimento ao CMI, confirma: “mudou muita coisa na forma como eu vejo as coisas. A gente começa a ver por outro ângulo”.
A peça adaptada “Mulheres de Papel”, que está sendo encenada na Penitenciária do Tatuapé, conta a história de catadores de papel de São Paulo e suas relações com migrantes nordestinos que invadem os espaços demarcados. Seus diálogos são marcados por palavrões – uma marca do autor Plínio Marcos - e até uma cena de nu está no script. Nada disso é considerado ultrajante tanto pela platéia quanto pela direção do presídio, por estar dentro de um contexto artístico. As apresentações são semanais e abertas também para visitantes. A temporada de Mulheres de Papel vai até dezembro, quando Spinola pretende deixar o grupo.
Apesar do sucesso, ele diz estar desgastado com o trabalho, mas não quer deixar de lado seus atores e atrizes. Por isso, pretende montar um grupo teatral com ex-detentos e os que estão em regime semi-aberto ou condicional. Espera ainda resposta da Funap sobre a possibilidade de conceder bolsas para os participantes. Quanto ao trabalho com quem ainda está preso, quer passar a gerência das oficinas para os atuais alunos ou voluntários.
Spinola se orgulha do trabalho e só lamenta mesmo os erros cometidos por alguns de seus alunos. “Há muita gente talentosa, mas parece que quanto melhor o ator, maior é a pena”.
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