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Como doar 1,1 bilhão de dólares

Autor original: Fausto Rêgo

Seção original: Artigos de opinião

Marcos Sá Corrêa*

Com uma barba que parece estar sempre por fazer, cabelo aparado a máquina e gravata curta demais, o empresário suíço Stephan Schimidheiny passaria por um professor contratado para dar uma palestra a executivos se o prédio da conferência não tivesse seu nome, a maior parte dos ouvintes de ternos escuros no auditório lotado não trabalhasse em suas empresas e ele não estivesse no Instituto Centro-americano de Administração de Empresas de Alajuela, Costa Rica, para explicar por que resolveu doar 1,1 bilhão de dólares para programas filantrópicos na América Latina.

Esse patrimônio, desde quinta-feira passada, pertence ao Viva Service S.A., um fideicomisso criado para controlar os negócios de Schimidheiny no continente. É coisa de gente grande: 30 fábricas e 40 empresas que se espalham por 17 países, empregam 13 mil pessoas e faturam um bilhão de dólares por ano com tubos plásticos, material de construção, plantações de palmito, macadâmia e arroz, além de 300 mil hectares de florestas para a produção de madeira certificada.

Ou seja, todo o GrupoNueva, o conglomerado de quatro tentáculos – Amanco, Ecos, Terranova e Masisa – nascido depois da Conferência Mundial do Meio Ambiente, que Schimidheiny ajudou a promover no Rio de Janeiro em 1992, para provar que dá para ganhar muito dinheiro na América Latina tratando direito sua sociedade pobre e sua natureza vulnerável. Nas mãos do Viva, ele passará daqui para a frente a gerar recursos para sustentar a Avina, uma fundação que nos últimos seis anos gastou 280 milhões de dólares com ONGs que tocam projetos sociais e ambientais em 10 países latino-americanos.

Juntando o GrupoNueva e a Avina, Schimidheiny criou o Viva com “duas pernas”, uma lucrativa, outra benemerente, e uma só cabeça, programada para encurtar a distância entre o lucro e a filantropia: “Para os funcionários, saber que os lucros gerados já não beneficiam um acionista, mas que serão reinvestidos em seu próprio meio social, beneficiando de forma direta a sociedade e de forma indireta a empresa, espero que esta seja uma motivação adicional”.

Último a falar como “convidado de honra” na conferência da quinta-feira passada, depois de passar pelo microfone até o premio Nobel Oscar Arias Sánchez, ex-presidente da Costa Rica, ele foi o primeiro orador que se atreveu a justificar a doação como medida do “senso comum”. À falta de um modelo para copiar, ele foi “o melhor conselheiro”, disse Schimidheiny. A fanfarrice não é seu forte. No fim do discurso, espremendo os olhos como se os óculos estivessem fracos, ele parecia embaraçado ao reconhecer que “a doação é sem dúvida grande para os padrões da América Latina”.

Mas a justificativa estava pronta. Por que se desfazer de tanta coisa aos 55 anos? “Porque estou numa idade em que ainda posso ver os resultados”, ele respondeu. Não é a primeira vez que troca de rumo. Aos 45, depois da Rio-92, ele vendeu suas companhias na Suiça, transferiu sua sede para a Costa Rica e plantou deste lado do mundo o GrupoNueva. Aos 29, assumiu a presidência da Eternit, a multinacional da família, no momento em que a empresa balançava com a descoberta de que o amianto, matéria-prima de suas placas fabricadas em mais de 20 países, era cancerígeno.

Bisneto de oleiro, neto de um fabricante de cimento, filho de um industrial que fundara um império sobre o amianto, Schimidheiny achou que estava metido num negócio sem futuro. Ele mesmo, estagiando na Eternit brasileira, mexera com a fibra venenosa. “Tomei uma decisão radical”, ele conta. Antes que o produto fosse proibido, prometeu em entrevistas coletivas que o grupo pararia de fazer produtos baseados no amianto. Como, nem ele mesmo sabia. Era como procurar a fórmula “da água seca”.

Na década de 80, quase quebrou várias vezes. Acabou “mais bem sucedido do que poderia supor” apostando em novidades, como redes de quiosques em estações de trem, banco, aço, máquinas fotográficas ou instrumentos eletrônicos, de preferência “empresas em crise que precisavam de uma reestruturação”. Em alguns desses investimentos, tirou a sorte grande. Ao pôr as fichas na relojoaria suíça, acuada pelos relógios japoneses, deu à luz a Swatch.

No começo dos anos 90, já era um troféu para ser exibido a assembléias de empresários, quando Maurice Strong, secretário geral da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, transformou-o em parteiro do Conselho Empresarial do Desenvolvimento Sustentável. Era uma cruzada para mostrar, como ele repete até hoje, “que não há negócios bem sucedidos em sociedades que fracassam” e é possível “atender as necessidades do presente sem comprometer o bem-estar das gerações futuras”. Schimidheiny largou tudo e foi cuidar da tarefa. No ano que antecedeu a Rio-92, fez 50 reuniões em 20 países. Lançou uma cartilha de desenvolvimento sustentável traduzida para 15 idiomas. Cunhou o termo “eco-eficiência”, para definir o padrão de decência ambiental. E fundou um conselho que hoje reúne 700 pessoas em 45 países.

Foi assim, via Rio-92, que chegou de vez para a América Latina, região onde sua família atuou marginalmente por mais de 60 anos. Aqui, encontrou uma “grande necessidade de filantropia”, tão grande que todo o dinheiro do mundo não bastaria para atender. E passou a investir em “empreendedores sociais”, dispostos a “produzir mudanças positivas” para “o maior número possível de pessoas”.

Gente que, no Brasil, acabou encarnando na médica carioca Vera Cordeiro, da Renascer, uma ONG que cuida de crianças pobres em suas próprias casas, ou da arquiteta Patrícia Chalaça, que implantou em Recife a Casa da Criança, uma réplica da Casa Cor para reformar e decorar de graça abrigos e creches. É esse o tipo de pessoa que desde 1994 a Avina banca, para tornar estáveis iniciativas que antes viviam da mão para a boca. Só no Brasil, quase 170 projetos sociais e ambientais já foram associados à fundação. No continente, há mais de 600 parcerias semelhantes. Cada um deles tem uma boa história, daquelas que raramente aparecem nos jornais.

“Sei que não vamos salvar a América Latina com esta doação”, disse o empresário na entrevista coletiva que apresentou o Viva à imprensa na sede do Instituto Centro-americano de Administração de Empresas, num campus à sombra de mangueiras que lembrava ao mesmo tempo a Jacarepaguá do passado e a Fundação Getúlio Vargas do futuro. Mas a seu lado estava James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, que passara de manhã pelo gabinete do presidente Abel Pacheco de la Espriella.

A audiência oficial atiçou os repórteres. “O que veio fazer na Costa Rica?”, perguntou-lhe um jornalista. “Vim aqui para encontrar meu amigo Stephen e agradecer o exemplo que ele está dando”, respondeu Wolfenshon, que no começo da carreira trabalhou para a família Schimidheiny. Só assim o doador se animou a ser enfático. “Espero que o Viva se torne contagioso”, ele concluiu, como se estivesse de volta ao tempo das discussões sobre o amianto. “Espero que contagie outras empresas”.


* Marcos Sá Correa é jornalista. Texto originalmente publicado pelo nomínimo (www.nominimo.com.br).






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