Autor original: Marcelo Medeiros
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O principal problema da educação brasileira é a falta de investimentos, que, aliada à desvalorização do educador e à fraca participação popular na elaboração de políticas públicas, faz com que o país ocupe o 37º lugar entre 41 países no ranking da Unesco de compreensão de leitura feita por alunos de Ensino Fundamental.
A opinião é de Denise Carreira, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que no dia 15 de outubro - quando se celebra o Dia do Mestre - organizou protestos contra esse quadro em pelo menos 16 estados. Carreira se encontrou na mesma data com o ministro da Educação, Cristóvam Buarque, a quem apresentou reivindicações do movimento. Revoltada com a diminuição de recursos para a área, ela diz que a reforma tributária deve ser modificada para que os recursos destinados à educação e saúde não sejam incluídos no cálculo do superávit primário. "A educação tem que ser prioridade não só de governo, mas de Estado", diz.
Nesta entrevista Carreira fala sobre isso, explica mais sobre a campanha e faz um convite a todos as pessoas interessadas para que participem dela ativamente.
Rets - Qual a sua avaliação da mobilização da campanha no dia 15 de outubro?
Denise Carreira - Ainda estamos fechando o balanço, mas ela foi bastante interessante. Foi bem legal em 16 estados, mas acreditamos que há mais unidades envolvidas. Em alguns lugares aconteceram manifestações e não ficamos sabendo a tempo. A campanha foi nacional, trabalhamos com cirandas, nessa idéia de roda, de diversidade. Unimos a parte política, bastante clara, com o lado lúdico. É um momento importante para esse processo, de colocar o aumento de recursos para educação no centro da roda de discussões.
Rets - A campanha tem quatro anos. É possível fazer um balanço desse período? A educação melhorou ou piorou?
Denise Carreira - A campanha é uma construção a médio e longo prazo. A concepção de qualidade de educação, assim como a de cidadania, é cheia de conflitos. Há discordâncias. Uns pensam que ela deve atender a demanda do mercado, outros que deve ir além disso. Mas podemos dizer que houve conquistas nesse tempo. A campanha é um espaço de articulação de movimentos e organizações cidadãs, que a consideram um instrumento de influência nas políticas públicas. Ela tem identidade plural, de rede. Pensa na educação de adultos, crianças, no fim da discriminação de raça. Sua função é mobilizar para dar saltos nas políticas públicas. Enfim, tivemos grandes avanços nos anos 80 e 90, mas elas não se refletiram na realidade.
Rets - Você poderia dar algum exemplo desses avanços e seus reflexos?
Denise Carreira - O Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), por exemplo, é uma boa iniciativa, mas, como todos sabem, o índice de aprendizado do estudante brasileiro é baixo. Basta olhar o índice da Unesco (o Brasil está em 37º lugar no ranking de compreensão de leitura da Unesco, na frente apenas de Macedônia, Albânia, Indonésia e Peru).
Outro exemplo é o acesso à escola. No Ensino Fundamental, 94% das crianças estão matriculadas, mas é preciso ligar a questão do acesso e da qualidade de ensino a outras políticas. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e o próprio PNE (Plano Nacional de Educação) são conquistas importantes. Mas é necessário mais recursos para a área. O investimento do Brasil é dos mais baixos do mundo. A qualidade de ensino e o acesso durante toda a vida exigem recursos. A Educação tem que ser prioridade não só de governo, mas de Estado.
A LDB estabelece a determinação de um índice de custo-aluno-qualidade, que é uma referência de valor que os governos deveriam levar em conta. Os valores estão na lei (R$ 438 por aluno de 5ª a 8ª série e R$ 418, de 1ª a 4ª, por ano em 2002), mas não houve avanços.
Na campanha, fizemos uma pesquisa sobre qualidade de ensino, que é um conceito submetido a disputas. Uns pensam que ela deve atender à demanda do mercado; outros, que deve ir além disso. A partir daí fizemos propostas e as levamos ao ministro [da Educação] Cristóvam Buarque. Entre elas, estão a criação de um grupo de trabalho que envolva a sociedade civil, parlamentares e governantes. Verba é importante, mas o controle social das políticas públicas também.
Rets - O que pode ser feito, então, para ampliar a participação popular na elaboração e fiscalização dessas políticas?
Denise Carreira - Hoje temos conselhos de Educação estaduais e municipais, mas as atribuições não são muito claras. Não há definição da função do conselheiro, falta informação. É preciso melhorar os conselhos e outros órgãos para dar mais efetividade à participação da sociedade civil. Eles não podem ser só espaço de endosso, mas sim de participação, discussão e definição de políticas. Na área de saúde, isso está muito mais avançado. Os Conselhos de Saúde funcionam.
Rets - A área de Saúde tem um movimento forte e organizado há algum tempo e a participação da sociedade civil no combate à Aids, por exemplo, é muito grande. Faltou poder de pressão ao movimento de Educação?
Denise Carreira - São áreas diferentes. O movimento de Saúde vem desde os sanitaristas, conta com mais participação. A educação tem outras origens. É o movimento de alfabetização, de mobilização popular. Houve um esforço de construir a legislação, mas hoje o desafio é como aprimorar essa participação. Para fazer o controle do orçamento, é preciso que os governos divulguem informações já pensando no controle social, além de criar espaços que ganhem força com a representatividade social. As áreas de Meio Ambiente e Saúde criaram conferências nacionais, por exemplo. No caso da Educação, existem conferências em alguns estados por causa do trabalho de organizações.
Além do orçamento, é preciso controle. O PNE, aprovado em 2001, teve os artigos relativos ao financiamento vetados pela equipe econômica do antigo governo. Ou seja, virou uma carta de intenções. Os planos municipais de Educação deveriam valer por dez anos, mas em muitas cidades os prefeitos começaram a fazer rápido a proposta para apresentar logo aos parlamentares ao invés de a discutirem. Houve até casos de contratação de consultorias para elaborar o plano. Por isso é preciso organizar campanhas, fazer pressão e mostrar para a sociedade a importância desses planos, que não são de governo, mas de Estado.
Rets - O PNE também estabelece que ao menos 7% dos gastos governamentais sejam destinados à Educação Básica. Hoje, esse índice é de apenas 4,8%. Se o valor estabelecido fosse cumprido, resultaria em um acréscimo de R$ 24 bilhões no orçamento de Educação. É possível obter esse dinheiro? De onde ele viria?
Denise Carreira - A perspectiva de nossa campanha não é de um aumento de hoje para amanhã, mas, sim, uma evolução gradual. Porém, infelizmente, a proposta orçamentária apresentada para o próximo ano revela queda. A reforma tributária desvincula recursos da Educação. A campanha conseguiu barrar isso na Câmara, com ajuda de vários deputados, e já estamos nos mobilizando no Senado, onde a proposta de reforma se encontra. Nossa intenção é tirar a Saúde e a Educação da contabilidade para o superávit primário. A educação reflete diretamente a desigualdade, então é preciso investir, se o governo está comprometido com a mudança dessa situação. As áreas sociais estão submetidas à lógica monetária, o que é muito perverso. Se se quer dar um salto de desenvolvimento, a Educação deve ser prioridade.
Rets - O governo já fez a reforma da previdência e está tentando passar a tributária. A campanha pede também uma reforma educacional. No que ela consistiria?
Denise Carreira - Na verdade isso foi uma brincadeira nossa, pois só se fala de reforma enquanto outras pautas são marginalizadas. É uma provocação a esse discurso monocórdico. Queremos aumento do financiamento e participação social – um conjunto de medidas coerentes que permita um salto de qualidade.
Rets - Outra proposta da campanha é o aumento da participação das comunidades na direção das escolas públicas. Como fazer isso? Há exemplos bem sucedidos?
Denise Carreira - Dos anos 90 para cá, muitas comunidades ganharam espaço nas escolas. Ainda não é maioria, mas há respostas muito boas para esse problema. Há vários exemplos envolvendo grêmios estudantis e associações de moradores, que inclusive já foram premiados pelo Unicef. Nós da campanha, junto com outras organizações, construímos um projeto de índice próprio de Educação. São perguntas simples para identificar desafios e refletir sobre eles. Ainda está em fase piloto, mas no ano que vem deve ser estendido ao maior número de instituições. O projeto é coordenado pela Ação Educativa com apoio do Unicef.
Rets - Você insiste bastante na necessidade de mais verbas para Educação, que é um problema inegável. Mas isso basta? Uma nova metodologia também não é necessária?
Denise Carreira - Sim. Há várias metodologias que podem ser trabalhadas, há muitas iniciativas inovando, mas o que está na base de todas são os princípios de diálogo, estímulo à criatividade e à curiosidade. Há busca ainda de empoderamento, uma proposta de educação onde as pessoas participem do desenvolvimento. Há muita gente fazendo isso, mas também é necessário uma política de valorização dos profissionais, além de melhoria salarial, com formação continuada. É preciso diálogo com a prática do professor, iniciativas mais arrojadas e mais recursos. Sei que não basta verba, mas ela é muito importante para aprimorar as coisas.
Rets - A carreira de professor já foi muito valorizada na sociedade, o que não acontece mais hoje. Algumas disciplinas nem conseguem formar alunos suficientes para atender à demanda. Como explicar isso?
Denise Carreira - Nos anos 60, a escola pública era elitizada, não atendia 90% da população como hoje. Meus pais não tinham acesso à ela, tiveram que se virar para conseguir educação. A escola não era popular. Nos anos 70 e 80 houve investimento no acesso, mas ele foi feito sem dar condições dignas de trabalho às educadoras. Essa experiência foi paralela à queda de salário e da valorização do profissional. Hoje, apesar da profissão ser bem vista pela sociedade, as condições fizeram muitas pessoas dar aulas por total falta de opção. Professores trabalham em salas ruins, com salários ruins e em condições ruins.
Os profissionais de apoio, como as merendeiras e vigias, passaram por precarização, estão sobrecarregados. É preciso uma política de valorização, de forma que a profissão ganhe força e status.
Rets - Como a campanha pretende abordar essa questão?
Denise Carreira - Ano que vem provavelmente esse será o foco. Precisamos valorizar o profissional, elaborar uma pauta que não se restrinja ao salário. Estamos pensando em uma série de ações e avaliações.
Rets - Por falar em avaliação, como a campanha vê as políticas de avaliação de ensino?
Denise Carreira - Não atuamos na avaliação, mas achamos essencial para contribuir para o salto de qualidade. Reconhecemos a construção do sistema de avaliação do último governo, mas ela precisa ser melhorada não só como sistema, mas como processo que envolva alunos e comunidades. A proposta de controle social, na verdade, é de avaliação do ensino e das políticas públicas.
Rets - Como é possível participar da campanha?
Denise Carreira - Ela é composta por 120 organizações, mas estamos passando por um momento de diversificação. Queremos envolvimento de jovens, parlamentares e jornalistas, pois Educação de qualidade deve ser pauta de todos. Na página da campanha (ver endereço eletrônico na área de Links Relacionados, na coluna ao lado) há portas de entrada na campanha. Precisamos envolver mais grupos.
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