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Com fome de novos desafios

Autor original: Maria Eduarda Mattar

Seção original: Notícias exclusivas para a Rets





Com fome de novos desafios
Campanha Natal Sem Fome

Neste ano, pela décima primeira vez, a sociedade brasileira irá se mobilizar em torno de uma campanha para combater, mesmo que temporariamente, a fome de milhões de famílias: trata-se da 11ª edição do Natal sem Fome, ação iniciada por Herbert de Souza, como um grito de alerta e chamada à ação das pessoas incomodadas com a situação de, na época, cerca de 30 milhões de brasileiros. Hoje, são 50 milhões vivendo na miséria, sem condições de suprirem suas necessidades alimentares, de acordo com o Mapa do Fim da Fome II. O estudo foi lançado em setembro pela Fundação Getúlio Vargas e pela Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida – nome do movimento iniciado por Betinho e que hoje se constitui na organização que leva à frente o sonho de acabar com essa mazela no Brasil.

Em dez anos de Natal sem Fome, a iniciativa já arrecadou um total de 18.088 toneladas de alimentos, envolvendo mais de nove milhões de pessoas. Os produtos recolhidos são não-perecíveis – normalmente arroz, feijão, macarrão, óleo, açúcar e farinha. Para o coordenador geral da Ação da Cidadania, Maurício Andrade, no entanto, o que se recolhe de mais valioso é a mobilização da sociedade, "que percebe que pode ajudar e há caminhos para isso, e o fato de se mostrar ao governo que a população quer participar".

O lançamento da mobilização anual ocorre sempre perto de 16 de outubro, Dia Mundial da Alimentação. Este ano, o dia 19 de outubro, um domingo, concentrou as ações que marcaram o início de dois meses de arrecadação de alimentos. No Rio de Janeiro, onde a campanha foi criada, foi montada no Aterro do Flamengo a já tradicional – e gigantesca – mesa. "Foi bem interessante, teve uma surpresa, causou impacto", relata Maurício de Andrade, coordenador geral da Ação da Cidadania, referindo-se ao fato de a mesa estar repleta de pratos e panelas vazios.

Porém, em um contexto no qual a fome foi alçada à posição de inimiga pública número um, sendo seu combate, agora, prioridade nacional, o debate sobre como acabar com ela tornou-se mais intenso. Nesse processo, questiona-se que efeito têm as doações de alimentos na erradicação da fome no longo prazo. A resposta parece ser sempre a mesma: quase nenhum. A conseqüência da transferência de alimentos é imediata: mata a fome – raciocínio traduzido na célebre e conhecida frase de Betinho: "Quem tem fome tem pressa".

Críticas sobre o imediatismo e a rapidez com que essas ações surtem efeito na vida das pessoas encontram eco, por exemplo, também entre as pessoas envolvidas nas ações do Natal sem Fome. "O pessoal carente não come só no Natal", indigna-se Anaíde de Souza Brito, responsável pela escolha das famílias que recebem as cestas de alimentação intermediadas pelo Comitê Esperança de Santa Margarida, de Campo Grande (RJ). "Ou temos que encontrar modos de as pessoas conseguirem comprar seus alimentos, ou as doações têm que acontecer durante o ano todo. As pessoas sentem fome, têm que comer", completa. Ela acredita que, para poder acabar definitivamente com o problema, é necessário haver oportunidades de geração de renda. "Tem que abrir espaço para empregos. Os políticos aqui da região, a quem vamos propor algumas alternativas e projetos que poderiam melhorar a formação das pessoas e ajudar a gerar trabalhos, simplesmente não nos atendem", queixa-se.

Ela conta que é recorrentemente abordada por famílias da região que pedem alimentos. Assim, em paralelo à sua profissão – Anaíde é inspetora de alunos –, se esforça para coletar alimentos em sobras de feiras e nas Centrais de Abastecimento (Ceasa). "Quando me dizem 'pode pegar a caixa, tia', agarro e não saio de perto", relata. Para Maurício de Andrade, as críticas às ações de doações de alimentos, reclamando que elas não resolvem o problema da fome, "são mais que coerentes". Segundo ele, é por isso que a Ação da Cidadania não faz campanha de arrecadação durante o ano inteiro. "Senão só gera espuma", diz.

Foi por isso que, no ano passado, a Ação da Cidadania havia decidido não mais fazer edições do Natal sem Fome. "Com a décima edição, ocorrida em 2002, nós iríamos parar de realizar as campanhas anuais", diz Andrade. A intenção era concentrar os esforços no Brasil sem Fome – que foi criado como desdobramento da Campanha Nacional pelo Voto Ético (também realizada pela Ação da Cidadania) e que tinha como base das atividades o estímulo ao plantio de feijão no país, aumentando para 750 mil toneladas/ano. Além disso, a fim de garantir a participação da sociedade e de outras organizações e movimentos sociais, foi criado o Conselho Estratégico do Brasil sem Fome, com a missão de articular, durante o ano todo, ações da “Rede de Solidariedade Brasil sem Fome”. Os debates desse conselho giram em torno de modos de estímulo ao plantio de alimentos para consumo interno, de alternativas de geração de renda e outras políticas públicas.

Nadja Faraone, coordenadora executiva do Comitê São Paulo da Ação da Cidadania, conta que a unidade paulista empreende também ações de planejamento, desempenhadas ao longo do ano todo. "Participamos dos conselhos municipal e estadual de Segurança Alimentar, tentando articular políticas públicas eficazes. Estamos atualmente na organização do Fórum Paulista de Segurança Alimentar e Nutricional, que será lançado em novembro e vai propor programas aos conselhos", conta a coordenadora. "Nossa linha é essa: tentar interferir nas políticas públicas ligadas à área", define.

Desafios

Então, por que a organização voltou atrás e realizará mais um Natal Sem Fome? Segundo Maurício de Andrade, o motivo é prático: a situação calamitosa apontada no Mapa do Fim da Fome II. "Precisamos estender os benefícios às 50 milhões de pessoas que estão em situação de miséria e, por isso, passam fome. O andamento das políticas sociais está muito lento, não conseguindo atender à demanda. O Natal sem Fome cumpre essa missão mais emergencial de prover alimentos para as pessoas, enquanto articulamos, ao longo do ano, as ações de influência nas políticas públicas", diz.

Agora, realizando mais uma vez a campanha de arrecadação de alimentos – nesse contexto novo em que a fome é preocupação de mais gente e em mais frentes –, a Ação da Cidadania tem no Natal sem Fome desafios. Um deles é conseguir que a sociedade participe não só nas ações do final do ano, mas sim de uma maneira mais ampla, mais integrada, cobrando do governo. Outro é articular-se com o Estado para que o grande poder de mobilização da entidade (que trabalha pela mesma causa do Fome Zero) seja aproveitado, ao mesmo tempo em que a Ação da Cidadania aproveitaria essa articulação para influenciar mais concretamente nas políticas públicas oficiais.

Para Andrade, isto é importante justamente agora, quando o Fome Zero está no topo das preocupações nacionais, para o governo perceber que suas ações estão muito lentas, que a demanda é maior – e imediata. "Existem 10 milhões de famílias sem comida!", exclama. Segundo ele, o Fome Zero tem ótimos planos e estratégias, mas sua execução está muito vagarosa. Andrade indica como um dos pontos mais importantes para que o programa governamental deslanche a criação de um cadastro único nacional de famílias em miséria. “A partir deste cadastro (que já está previsto no governo), não só a iniciativa governamental vai mapear melhor a situação da fome, mas também vai poder realizar com mais eficácia os programas de transferência de renda, como o bolsa-escola, o renda mínima etc.”

Além disso, Andrade acredita que todos os planos que o Fome Zero apresenta – reforma agrária, aumento da produção interna de alimentos etc. – estão corretos, porém precisam ser realizados mais rapidamente. “No ano que vem, podemos chegar à autonomia na produção de petróleo. No entanto, importamos cada vez mais arroz e feijão. Compramos 100 mil toneladas de feijão e um milhão de arroz, o que é um absurdo em um país com tanta área agriculturável como o Brasil”, comenta.

Assim, uma das maneiras de a Ação da Cidadania conseguir unir forças com o governo é justamente levar para o debate as sugestões e as prioridades percebidas na prática, por quem lida diariamente com o assunto há dez anos. Além de colocar o banco de dados da entidade à disposição (o que a organização fez assim que o atual presidente foi eleito), isso inclui discutir projetos factíveis com o poder público e tentar em conjunto construir atividades estruturais, como quer o governo, que surtam efeito rápido, como defende a Ação da Cidadania. Uma das formas de isso acontecer é na próxima Conferência Nacional de Segurança Alimentar, prevista para acontecer em março de 2004. Esta será a segunda edição do evento – o primeiro aconteceu há quase dez anos, em 1994. “Já nos manifestamos sobre a conferência. Acreditamos que o evento tem que ser adiado, para possibilitar a participação de mais delegados e a preparação e a mobilização de mais gente”, diz Andrade.

O principal desafio, no entanto, segundo Andrade, é "continuar mobilizando as pessoas e ampliando o número de parceiros". Faz sentido: depois de tanto tempo, a população pode até chegar a ficar desacreditada da eficácia da campanha (apesar de não ser isso o que os números crescentes da iniciativa apontam). Por isso Andrade faz questão de ressaltar a importância do Natal sem Fome como uma oportunidade de despertar, de chamar à ação. "A campanha é interessante porque, além de levar alimentos para quem está precisando, mostra ao governo que a sociedade quer participar.

O número de parceiros também tem crescido. Hoje, são 200 empresas parceiras do Natal sem Fome. “No momento em que todas as pessoas e setores – sociedade civil organizada, empresas, pessoas físicas, todos – perceberem que têm responsabilidade no combate à fome, que é um problema de toda a sociedade, estaremos conseguindo cumprir o nosso papel”, diz Nadja Faraone.

Quanto ao desafio de mobilizar as pessoas em geral, os números da campanha nos anos mais recentes mostram que a iniciativa vem crescendo consideravelmente: em 2000, foram 1.600 toneladas de alimentos arrecadados; em 2002, 5.823 toneladas, mais que o triplo. O número de pessoas também aumentou rapidamente: de 800 mil participantes, em 2000, passou a mais de 2,9 milhões no ano passado.

Se o ritmo continuar, em breve os números contabilizados poderão ser outros: por exemplo, o de 50 milhões de brasileiros ex-famintos.

Matéria atualizada em 21 de outubro.

Maria Eduarda Mattar

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