Autor original: Maria Eduarda Mattar
Seção original: Notícias exclusivas para a Rets
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No início de outubro a Organização das Nações Unidas, através de seu Programa para Assentamentos Humanos (Habitat), divulgou relatório sobre água e saneamento ambiental no mundo. A situação, como era de se esperar, não é animadora. Mais de 1 bilhão de pessoas nos países em desenvolvimento estão sem água segura para beber. Quase 3 bilhões de indivíduos vivem sem acesso a saneamento adequado. O Brasil, em um ranking com 23 países de América Latina e Caribe, está em sexto lugar no quesito abastecimento de água em centros urbanos, com 91% de casas conectadas a uma rede de encanamento. Quanto a saneamento básico, o Brasil tem apenas 59% de casas abastecidas com este serviço, caindo para 11º lugar na classificação.
Não é só para a posição do país em rankings que a falta de saneamento ambiental é prejudicial. Causa prejuízos para uma série de aspectos da vida das pessoas - sendo os principais o meio ambiente e a saúde humana. As conseqüências são óbvias: em um ambiente em que esgoto corre a céu aberto, por exemplo, a transmissão de doenças é facilitada exponencialmente; além disso, com os dejetos indo para lugares inadequados - como rios e terrenos próximos - o meio ambiente é diretamente prejudicado, com uma descarga de esgoto que não pode absorver ou dar vazão. Ao mesmo tempo, a falta de água tratada nas casas das pessoas impede que se tenham as condições de higiene ideais. E muitas outras situações poderiam ser citadas.
"É tudo interligado. Por isso, fala-se nessa trindade de coisas que é o saneamento ambiental, incluindo o esgotamento sanitário, a coleta de lixo e o acesso à água tratada. O cuidado com a água é fator primordial nesse processo todo. Ela pode servir às pessoas, por um lado, quando chega até elas tratada e adequada. Mas pode representar um desserviço, por outro, pois é o maior condutor de doenças que se pode ter, quando é contaminada, suja", diz o representante do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil, José Carlos Libânio.
O relatório do ONU-Habitat revelou também que, no Brasil, dono de 12% dos recursos hídricos do globo, 83 milhões não têm saneamento básico e mais de 45 milhões de moradores carecem de rede de água. "O Brasil é um país atípico, em que nós vemos tanto situações de países desenvolvidos quanto de nações em desenvolvimento, com uma distância de poucos quilômetros entre uma e outra", analisa Libânio.
Nesse contexto, as pessoas percebem a real dimensão da falta de saneamento ambiental? Têm consciência do conjunto de males que podem ser ocasionados? Para Demóstenes Romano, coordenador do projeto Gente Cuidando das Águas e integrante do Movimento Cidadania pelas Águas, a população até se dá conta dos males que são trazidos pela falta de saneamento ambiental adequado, mas de uma maneira diferenciada. "Pesquisas como a da ONU têm uma visão mais coletiva. As pessoas que são atingidas pelo problema têm, na verdade, uma percepção pessoal, vêem suas crianças adoecendo dentro de casa etc. Elas sentem os problemas e, para elas, é muito mais cruel - vai desde a morte física até todo o desgaste emocional. Elas sofrem o descaso, e isso humilha, envergonha", diz.
Segundo Daniel Becker, presidente do Centro de Promoção da Saúde (Cedaps), as pessoas não sabem direito das possíveis conseqüências do problema. "Absolutamente, não. A população não tem noção dos riscos que corre. São esgotos que vazam, línguas negras no meio das ruas, crianças brincando no meio disso tudo. No Rio de Janeiro, onde atuamos, a situação é vergonhosa; chega a ser pecaminosa. Vemos pessoas convivendo com fezes dentro de suas casas, cada vez que chove. Além disso, a qualidade da água que chega às torneiras é péssima, não se pode confiar".
Libânio acredita que, justamente pelo fato de o Brasil encerrar uma diversidade extraordinária, as pessoas têm percepções diferentes do assunto, variando de acordo com o local em que moram e com as condições - naturais e de serviços - de que dispõem. "Por exemplo, uma família que more em palafitas na região norte do país - onde a densidade demográfica é pequena -, mesmo não tendo serviços de esgotamento sanitário, pode não ser facilmente atingida por doenças e males, porque a natureza se encarrega de absorver. Assim, esses moradores não percebem tão claramente o problema da falta de esgotamento sanitário, por exemplo", diz o representante da ONU.
Naturalmente, um direito humano
Além de um lógico entrave ao desenvolvimento das populações, falta de água adequada para consumo e de esgotamento sanitário significam, também, a privação de um direito humano - o direito humano de acesso suficiente à água tratada, reconhecido pela ONU em fins do ano passado. Demóstenes Romano acredita que nem é preciso ir tão longe para justificar a necessidade de água adequada para as pessoas. "Basta o bom senso. É tão óbvia essa necessidade, que é quase um direito animal, em vez de direito humano. Não precisamos de instâncias reconhecendo ou não. Em Direito, é o que chamamos de 'direito natural'", diz ele, que também coordena a Central de Voluntariado de Minas Gerais.
Pela própria diversidade de implicâncias que o saneamento ambiental insuficiente pode ter, não é possível fazer separação de áreas em que se tem mais ou menos efeitos dos problemas. É tão maléfico para a saúde quanto é para o meio ambiente, para as condições de moradia, para o desenvolvimento local, além de diversos outros aspectos. Assim, não é possível, também, indicar um único tipo de organização não-governamental que deva tratar do assunto. Assim como complexas são suas características, complexos devem ser o tratamento e a abordagem do tema.
"Falta, como em tudo, uma visão mais humanística. Uma das coisas mais tristes é não tratarmos da melhoria deste quadro do ponto de vista integral. Isso é uma das fomes de que tem que tratar o Fome Zero, por exemplo", defende Demóstenes Romano. Ou seja, as organizações que se dispuserem a tratar deste tema, conscientizando a população ou lutando para que alguma das condições ruins seja alterada, devem levar em conta essa complexidade.
Para Becker, saneamento básico - principalmente em ambientes urbanos - é uma questão de políticas públicas. Assim, "as organizações não-governamentais podem atuar em três frentes: educando as populações, alertando para a importância do saneamento e dos riscos e como evitá-los; agindo na mobilização comunitária para que as pessoas atingidas pressionem os órgãos públicos; e na mobilização e articulação das próprias ONGs, pressionando o Legislativo e o Executivo - municipal, estadual e federal - para ampliar os recursos para o saneamento básico".
De acordo com José Carlos Libânio, é primordial que ONGs e movimentos sociais que atuam com o tema estejam devidamente informados. "Precisa-se democratizar o acesso às informações, conhecer melhor o problema e a realidade a ser enfrentada. Isso pode contribuir para uma melhor organização e articulação das entidades, para a busca compartilhada de soluções e para encontrá-las de forma mais imediata", diz o representante. "Nós - ONGs e cidadãos - não podemos ser assistencialistas, paternalistas. Devemos ser libertadores, estimular as próprias pessoas que são atingidas pelo problema a lutarem para melhorar a situação. Temos que tratar da inclusão em todas as instâncias dessas pessoas", defende Demóstenes.
Assim como o diretor do Gente Cuidando das Águas, o assessor da ONU não acredita que se possa distinguir um ou outro mal mais grave em decorrência da falta de saneamento ambiental. "O principal prejuízo é para a vida humana. O ser humano acaba vivendo menos e pior", resume Libânio. Demóstenes insiste que não se podem fazer as separações que normalmente são feitas para tratar desse assunto, optando por apontar um ou outro problema que se considera mais grave e, assim, ignorando que diversas áreas estão relacionadas e que todas têm a ver, em última instância, com a qualidade de vida e com a dignidade humana. "Não podemos ter uma visão separatista. Talvez este seja o grande mal. Essas análises que a ONU faz parecem uma foto em preto e branco de uma situação que conhecemos há muito tempo, como se se fizesse uma análise cadavérica no corpo já morto”, analisa.
"Não podemos tratar as coisas de acordo com a moda: ontem tratamos da dengue, hoje cuidamos da questão da moradia e amanhã trataremos de um outro assunto. Não podemos ver o problema separadamente, pois a causa é a mesma: a dignidade humana. As pessoas não podem ser humilhadas", conclui Demóstenes.
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