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Os direitos indígenas no governo Lula

Autor original: Fausto Rêgo

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Foto: Os direitos indígenas no governo Lula


Um misto de sonho e choque de realidade, de incompreensão e perplexidade, de expectativa e frustração foi criando uma incômoda tensão no movimento indígena e nas entidades de apoio aos índios ao longo de 2003. Uma tensão que não é gerada, unicamente, por questões políticas e ideológicas, ou por interesses corporativos e resistências “irracionais” a mudanças. Numa alusão aos “acenos” não concretizados da campanha eleitoral - contidos parcialmente no documento “Compromissos com os Povos Indígenas”, e passados mais de nove meses desde que o presidente Luís Inácio Lula da Silva assumiu o governo federal, algumas dúvidas estão se disseminando entre setores dos movimentos indígena e indigenista: será este o “jeito petista de ser governo?” Não é possível existir uma outra forma de fazer política indigenista governamental no Brasil? até quando esperar o que “Lula prometeu”?


Nos últimos quatro, cinco anos houve conquistas importantes no cenário político e institucional brasileiro, que apontaram no sentido da construção de uma política indigenista pós-Funai, instituição caracterizada pelo centralismo burocrático e orientada por princípios eminentemente assistenciais e tutelares. Tivemos avanços, por exemplo, no campo da política de atenção à saúde indígena, com a criação de um sistema de serviços e de gestão baseado em Distritos Sanitários Especiais Indígenas - DSEIs - regionalizados (hoje são 34) e na formação de conselhos locais e distritais (atualmente, 105 e 28, respectivamente) com participação indígena. Um início de estruturação de instâncias de articulação nacional esboçou-se na Comissão Intersetorial de Saúde Indígena – CISI - e noutras instâncias de controle social criadas.

Mas, diríamos, foi uma “reforma imperfeita”. A Conferência Nacional de Saúde Indígena, de maio de 2001, já apontava os limites e os novos desafios que se colocavam: a forma de convênio da Fundação Nacional de Saúde – Funasa – com as instituições prestadoras dos serviços (ONGs, organizações indígenas, prefeituras, etc.); a forma de contrato e a qualificação dos profissionais indígenas e não-indígenas; a falta de compromisso e a má gestão dos recursos financeiros por parte de algumas prefeituras; as dificuldades que os DSEIs vinham tendo para viabilizar o atendimento dos índios na rede do SUS nãoíndígena; a falta de uma capacitação continuada das entidades indígenas para atender às exigências administrativas e gerenciais; e a precariedade do processo de acompanhamento e avaliação dos serviços e seus resultados.

O mesmo pode ser dito em relação ao sistema de educação escolar indígena – que se quer bilíngüe e intercultural -, que passou a ser coordenado pelo Ministério da Educação e executado pelos estados e municípios a partir de 1991 (Decreto nº 26/91): ocorreram avanços na legislação, no campo curricular, no material didático utilizado, na articulação com o movimento indígena, e na formação e qualificação de professores indígenas; mas aquém da proposta de constituição de um sistema específico com autonomia de gestão indígena e recursos orçamentários, humanos e didáticos adequados.

No campo da gestão de recursos naturais, destacou-se, em 2001, a criação do componente Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas - PDPI, no âmbito do Programa Piloto de Proteção das Florestas Tropicais - PPG7, que pode ser o embrião de uma política de fato, e não só “demonstrativa”, que complemente a ação de garantia dos territórios indígenas e permita que se caminhe no sentido de um programa de “desenvolvimento indígena” ou de “etnodesenvolvimento”, há tanto tempo anunciado e reivindicado. Mas para isto, é no mínimo necessário mais agilidade e compromisso no campo gerencial e administrativo: há mais de um ano, tanto o Banco do Brasil quanto o Ministério do Meio Ambiente “empurram com a barriga” a assinatura de um contrato de serviços que permitirá o repasse dos recursos financeiros para as entidades indígenas, colocando em sérios riscos a credibilidade do PDPI e de sua equipe, e a própria exeqüibilidade dos projetos aprovados.

E o que se viu a partir de 1º de janeiro de 2003? A tão esperada articulação intersetorial do governo federal, anunciada no documento de campanha, continua no papel. A maior abertura do aparelho de Estado ao protagonismo indígena e ao fortalecimento das suas capacidades para intervir e assumir de forma qualificada a gestão e o controle social das políticas públicas têm se manifestado, quando muito, em doses homeopáticas. É até compreensível que haja problemas na montagem da equipe de governo, um tempo necessário para conhecer e avaliar a estrutura e os recursos humanos disponíveis e necessários; que o contingenciamento de recursos tenha constrangido muitas iniciativas e expectativas; que haja conflitos de valores, interesses e objetivos entre os “continuístas” e os que querem mudar; e que a “herança maldita” pese excessivamente. Mas até quando esperar?

Como se não bastasse isso, as alianças político-partidárias que permitiram a eleição do presidente Lula, somadas às articulações que vêm sendo estabelecidas dentro e fora do Congresso Nacional com vistas à aprovação das reformas previdenciária e tributária – ambas fundadas na suposta necessidade de atender às demandas da balança de pagamentos e na crença de que nem “tudo que é sólido se desmancha no ar”-, têm obstaculizado, ao que parece, os avanços e a concretização dos direitos indígenas com muito custo conquistados.

Nos meses de março, abril e agosto de 2003, tivemos três grandes encontros nacionais de lideranças e organizações indígenas, quando o movimento indígena organizado indicou ao governo federal a sua proposta para uma política indigenista efetivamente de “mudança”. O que esperar, então, do Congresso Nacional? A Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas é uma luz de esperança, um aliado importante. Há possibilidades concretas para uma articulação mais orgânica entre seus integrantes e o movimento indígena organizado, mas isso vai depender substancialmente da capacidade de os parlamentares abrirem espaços efetivos de manifestação e participação indígena junto aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e de tornarem mais transparente o Congresso Nacional, estabelecendo canais de divulgação dos atos legislativos que ali tramitam – projetos de lei e emendas constitucionais, por exemplo.

Em suma, temores, tensões e expectativas foram a tônica destes primeiros meses de Governo Lula.

Este texto é um extrato do Boletim Orçamento & Política Socioambiental nº 7, lançado em outubro pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e pela Fundação Heinrich Böll. A íntegra do documento está disponível na área de Downloads, ao lado.






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